quinta-feira, novembro 24, 2005

Texto de Giacometti e Fernando Lopes Graça, sobre as Beiras

Comemorando-se o centésimo aniversário do nascimento de Fernando Lopes Graça e desconhecendo qualquer iniciativa de homenagem na Beira Interior, mesmo nos Concelhos apontados como tendo um forte pendor cultural, divulgo um texto de Giacometti e Fernando Lopes Graça, em que apresentam o CD que editaram conjuntamente, sobre a temática das Beiras. Fernando Lopes Graça foi um investigador que divulgou, registou e "descobriu" a cultura Musical da Beira Interior, sendo por isso merecedor de uma justa homenagem.

In: Portuguese Folk Music, Volume 3, Beiras, Michel Giacometti e Fernando Lopes Graça, Strauss, Portugal Som, 1998
“O inquérito etnomusicológico que abrangeu vastas zonas das Províncias da Beira Alta, Baixa e Beira Litoral tonou-se possível, na sua extensão e profundidade, graças à colaboração convergente de várias entidades privadas e oficiais.
Deste modo facilitado, o inquérito processou-se em seis etapas (de Agosto de 1968 a Outubro de 1970), no decurso dos quais foram percorridos cerca de vinte mil quilómetros e recolhidas, em noventa das cento e setenta localidades sobre as quais incidiu o nosso trabalho, seiscentas espécies musicais, representando umas trinta horas de gravação útil.
A escolha dos documentos para a composição do presente disco, que pretende ser, por assim nos exprimirmos, a suma do inquérito, obedeceu ao imperativo de uma representação tão objectiva quanto possível, nos planos quantitativo e qualitativo, dos cinco distritos que constituem as três Beiras. Representação que, no entanto, não pode, como se torna óbvio, reflectir a realidade musical objectiva desses mesmos distritos, mas apenas acentuar as suas linhas ou tendências gerais.
No próprio encadeamento dos trechos musicais procurou-se, em obediência ao critério adoptado ao iniciarmos este panorama, facilitar a apreensão por parte do simples ouvinte, mediante um contraste apropriado dos géneros, modalidades, estruturas melódicas e harmónicas, etc. Pensamos ainda que semelhante apreensão pode também ser facilitada pela unidade estética para que, até certo ponto, convergem os vinte e oito trechos compendiados. Por fim, sem nos afastarmos deste critério, entendemos por bem juntar espécies cujo confronto imediato, dentro de uma mesma sequência, possa servir aos estudiosos da nossa música regional.
Força nos é notar novamente o estado de desagregação em que se encontra a nossa cultura de tradição oral, sendo de prever num futuro que se nos afigura muito próximo o total desaparecimento das suas formas originais. E mais uma vez apontaremos como elementos subversivos, neste caso, as comunicações de
massa na sua quase generalidade quotidiana, a par dos muitos agrupamentos chamados folclóricos que, como que dialecticamente, actuam para fomentar e difundir formas convencionais de cultura. Neste sentido, diremos todavia que o grave fenómeno de emigração se nos não antolha, após reflexão, influir por ora de maneira por demais ostensiva nesse processo de desagregação a que vimos aludindo.
Resta-nos dirigir aqui nos nossos mais vivos agradecimentos ao povo beirão, que, espontaneamente, nos prestou a mais útil e dedicada assistência.
Michel Giacometti
A música das províncias beirãs é acaso aquela que, dentre as nossas músicas regionais mais cedo e com relativa continuidade foi e tem sido objecto de curiosidade de investigadores ou simples colectores. O sinal de partida foi dado pelo erudito Pedro Fernandes Tomás (não especificamente músico) quando, em 1896, publicou as suas Canções Populares da Beira, prefaciadas pelo ilustre Leite de Vasconcelos (também nada familiarizado com as disciplinas propriamente musicais). A partir de então, as compendiações escritas dessa música constituem um pequeno corpo de publicações de valor certamente desigual mas que, não obstante. colocaram a música beirã (e mormente a da Beira Baixa que, neste capítulo, devemos considerar levar a palma às suas irmãs) numa situação de privilégio em relação às outras províncias portuguesas, pelo que se refere à sua divulgação no público e, digamos, ao seu aproveitamento" por parte dos próprios músicos, profissionais ou amadores.
No entanto, todas estas publicações, irregulares já de si (com uma que outra excepção relevante) nos critérios propriamente etnomusicológicos que as informavam, pecavam ainda por uma deficiência fundamental: a de nos oferecerem uma imagem unilateral da música beirã, reduzida ao monodismo, quando o que faz o interesse e o valor mais inapreciável deste é sem dúvida a sua a bem dizer predominante estruturação polifónica.
Sem desconhecermos trabalho já anteriormente feito, mas pouco acessível, no campo da fixação por meio de gravação da fisionomia própria da música beirã (referimo-nos aos discos realizados por Artur Santos por incumbência da B. B. C. de Londres), cremos que o presente volume da série Música Regional Portuguesa vem trazer um contributo essencial ao conhecimento e estudo de uma música que se revela possivelmente como a mais rica, quanto a aspectos, e no plano morfológico e estilístico, entre as nossas músicas folclóricas.
Talvez em nenhuma outra região portuguesa, como nas Beiras (com alguma reserva para a Beira Litoral e certas zonas da Beira Alta - e se é que é cientificamente legítimo operar dicotomias em províncias que, geográfica e etnografìcamente, se interpenetram), se nos depare uma tal variedade, uma tal sobreposição de estratos de música folclórica, o "primitivo" vizinhando o "evolucionado", o "antigo" a par do "moderno". Claro que "primitivo" e "evolucionado', "antigo" e "moderno" são aqui conceitos puramente relativos e sem significação imediatamente valorativa: nem o "primitivo" ou o "antigo" são sinónimo de rudimentar, inferior, nem o "evolucionado" ou "moderno" implicam polimento, superioridade.
Não há dúvida porém que, debaixo de um ponto de vista prioritariamente atnomusicológico, as espécies "primitvas" ou "arcaicas" (o que talvez se possa classificar de "estilos antigos" da música beirã) aqui reunidas - citemos, por exemplo, além das várias cantigas de romaria, os Martfrios e a Cantiga da Azeitona, respectivamente n° 2 e nr3 a Cantiga da Ceifa, o Oté, ó Senhora Mãe e a Aleluia, n"` 12, 20 e 24 - não há dúvida que tais espécies oferecem propostas de vária ordem que fazem delas, para além da sua beleza própria, documentos de raro interesse, certamente destinados a enriquecer os aliciantes horizontes da musicologia comparada.
Fernando Lopes-Graça
1. BACELADA
Documento recolhido em Tavarede (Figueira da Foz, Coimbra), Refere-se à cava da manta para plantio do bacelo, faina que se realiza entre Dezembro e Março. O capataz da bacelada é o mandador Os bons mandadores eram disputados pelos proprietários e recebiam jorna superior à dos cavadores. Embora cavando também com os seus companheiros, a tarefa principal do mandador consistia em manter, mediante o seu "canto", o ritmo do trabalho, aproveitando no entanto o ensejo para inserir no "canto" improvisos destinados a fazer chegar aos ouvidos do proprietário certas reivindicações de ordem colectiva. Por seu turno, os proprietários fomentavam por vezes rivalidades entre os mandadores a seu soldo, sempre no intuito de manter ou acelerar o ritmo do trabalho. Com dificuldade se poderá considerar estarmos aqui em presença de uma espécie propriamente musical. Mais do que de um canto, trata-se antes de um ritmo - um ritmo de trabalho associado a um grito ou brado de estimulo, este, na verdade, já embrionariamente musical. Como tal, e posto que a prática tenha quase caído em desuso, o documento, além do seu aspecto sociológico, poderá, na sua dualidade sociológica, interessar os estudiosos da pré-história da música, mormente os seguidores das doutrinas de Wallaschek e Búcher, que têm precisamente o ritmo e o esforço muscular como factores primordiais no surgimento do fenómeno musical.

2. MARTÍRIOS
Canto religioso da Quaresma recolhido em Alcongosta (Fundão, Castelo Branco). Ainda hoje se canta pelas 10-11 horas da noite, em frente das capelas do lugar, aos domingos das sete semanas da Quaresma. É também cantado nos trabalhos do campo durante o mesmo período. Afectando a forma responsorial, a lenta e expressiva melodia tetracordal, de feição quase litúrgica, é proposta por uma voz feminina grave, depois do que é retomada em duplo gymel, ou variedade de fabordão a 4 vozes (baixão-voz grossa, ou voz fina por baixo - voz alta - voz fina por alto), pelo coro também de vozes femininas.
3. CANTIGA DA AZEITONA
Canto de trabalho recolhido em Teixoso (Covilhã, Castelo Branco). Do tipo dos "cantos de ar livre", consiste num simples pentacórdio maior com ornato superior, levemente melismático, o 4M grau por vezes "sensibilizado", entoações 'oscilantes" - estrutura melódica frequente em muitos cantos da Beira Baixa, que deste modo ganham um certo ressaibo "oriental".

4. BENDITO
Canto religioso caído em desuso, pelo menos em Rocas do Vouga (Sever do Vouga, Aveiro), onde foi recolhido. Segundo a informação fornecida, cantava-se antes do início da missa e para acompanhar o Senhorfora, ou seja o viático. Reveste aspecto antifonal: um coro monódìco de vozes masculinas alterna com um coro polífónico de vozes femininas. Ritmo quase silábico da proposta contrastando com a linha mais sinuosa, mais vocalizada, os portamentos e a "incerteza" tonal da resposta a 3 vozes (encher - fala fora - voz alto). Há notícia do canto comportar uma quarta voz: o guincho.

5. ALVORADA
Trecho instrumental recolhido em Eira Pedrinha (Condeixa-a-Velha, Coimbra). Como habitualmente, a alvorada toca-se nas manhãs dos dias festivos. O conjunto instrumental compõe-se de gaita de foles, bombo e caixa ou tarola. Estilo floreado do instrumento "cantante" comum aos gaiteiros do Norte de Portugal e da Galiza. A gaita de foles apresenta as costumadas e saborosas "anomalias" tonais. Vivo contraponto ritimico de percussão.

6. AMENTAR DAS ALMAS
Canto religioso, noutras regiões designado por Encomendação das Almas. Foi recolhido em Aldeias (Gouveia, Guarda) e é ainda com certa frequência cantado em sete pontos da freguesia todas as terças e sextas-feiras da Quaresma, durante a noite (tal como nas tradicionais Encomendações das Almas). E uma espécie de canto processional polifónico entoado por
vozes femininas. As entradas sucessivas das vozes revestem a forma de um solene fabordão em terceiras e sextas com apoio em quintas. Corte ternário da peça: canto-oração recitada-canto. Repare-se na sonoridade como que "instrumental" da polifonia. A insegurança da entoação é percalço difícil de evitar, dado o número e a idade avançada das informadoras.

7. S. JOÃO
Cantado na véspera e na noite de S. João do Rosmaninhal (ldanha-a-Nova, Castelo Branco), onde foi recolhido. Nesta localidade, as testas do S. João dão ensejo a manifestações colectivas de alegria com características nitidamente pagãs: cavalhadas nas quais participam todos os que possuem bestas de carga; distribuição de tremoços, broas de mel e vinho; repastos pantagruélicos, etc. A organização da festa acha-se a cargo de um alférece e de padrinhos escolhidos pelos que serviram no ano anterior, ou ainda de pessoas que fizeram promessa de "servir" (3). A espécie musical pertence ao género das chamadas "cantigas de adufe", de que a Beira Baixa mantém por assim dizer a especialidade. Duas mulheres entoam um simples inciso melódico em ritmo de marcha e num saboroso mixolídto de fá corri omissão do 2° grau. A deformação da voz sobressaliente, aquela espécie de rouquidão, deve ser considerada um característica de estilo e não um ricto caricatural, como se poderá pender a crer.

8. BENDITO
Canto de trabalho recolhido da boca dos pescadores do Furadouro (Ovar, Aveiro), onde caiu praticamente em desuso com o desaparecimento das grandes embarcações, algumas delas movidas por mais de quarenta remadores. O Bendito é cantado com devoção, a cabeça descoberta, já para conjurar os perigos do mar, já para implorar a protecção divina perante dificuldades surgidas na faina (desastres pessoais ou materiais), ou ainda no regresso a terra, para conjugar os esforços dos remadores, desanimados por o lanço não se antolhar prometedor. É cantado antifonalmente por dois grupos de homens. Melodia de carácter quase lítúrgico adaptada a um ritmo funcional. São informadores pescadores- remadores. todos naturais do Furadouro.

9. CANTIGA DA CEIFA
Canto de trabalho recolhido em Lourosa da Tropa (S. Pedro do Sul, Viseu) é entoado por vozes femininas. Afecta a forma de responsório: um grupo inicia monodicamente o canto, seguindo-se-lhe, à guisa de resposta, uma polifonia em organunt de terceiras e quintas paralelas (começo ou botar fala - descante - erguer). Na cadência final, o sétimo grau não sensibilizado provoca urna expressiva transformação tonal, por efeito mesmo do paralelismo harmónico. O canto termina pelos chamados "gritos de apupo", um tanto insolitamente em contradição com a gravidade do trecho.

10. DANÇA DOS HOMENS (frag.)
Recolhida em lousa (Castelo Branco), a Dança dos homens, como a Dança das virgens, é dançada durante as festas em honra da Senhora dos Altos Céus (terceiro domingo de Maio), frente á igreja e. seguidamente, nos lugares mais centrais do povoado. Também conhecida por Dança de genebres, é executada por seis homens trajando calças e camisa branca, e ostentando uma espécie de tiara ornamentada com flores e fitas de várias cores, etc., três rapazs em vestes de donzela, e um guardião (mestre ou ensaiador), vestido de soldado com espada à cinta. Dos seis homens, cinco tocam bandurras (viola da zona raiana de Castelo Branco com dez cordas de arame, embora as bandurras aqui utilizadas tenham encordamento - apenas oito cordas - e afinação diferentes), o sexto toca a geneores, "espécie de xilofone, com uma série de paus redondos maciços, de tamanhos crescentes de cima para baixo, enfiados numa tira de couro formando colar...". Este instrumento, único no Pais, ao nosso conhecimento, é utilizado na Lousa exclusivamente na dança que tem o seu nome. Os três rapazes, enfim, tocam trinchos, uma espécie de pandeiretas sem peles. Todo o interesse propriamente musical do trecho vem-lhe da mistura "discordante" dos instrumentos principais: o grupo das bandurras, com a sua fórmula rítimica elementar, que consiste numa simples alternância de acordes rasgados de como que tónica e sobre-dominante e ainda como as suas entoações um tanto caprichosas, e a genebres, com os seus glissandos (precedidos, à laia de introdução, de um acorde de três sons arpejado) que formam uma espécie de pedal rítmica imutável - donde o curioso complexo harmónico e fimbuço resultante, adicionado ainda pela sonoridade chocalhada do trincho.

11. MAÇADELA DO LINHO
Canção de trabalho. Uma simples e graciosa frase hexacordal em ritmo de marcha pontoada pela percussão da espadela. Foi recolhida em Malhada Sonda (Almeida, Guarda).

12. SENHORA DO ALMURTÃO
Canto de romaria e devoção à Senhora do Almurtão, cuja ermida, situada a oriente de Idanha-a-Nova, se torna lugar de concentração das gentes de todas as povoações do concelho na terceira segunda-feira depois da Páscoa. As festas começam na véspera, em honra de S. Romão, ao que se faz alusão, recolhida em Proença-a-Velha (Idanha-a-Nova, Castelo Branco). Como sucede com todos os outros cantos de romaria da mesma província, é acompanhada por adufes, instrumentos de percurssão (uma espécie de pandeiro quadrangular sem soalhas mas com pedaços de louça, guiava ou outros materiais no interior) tangidos em regra por mulheres e em que elas são exímias. O canto, monódico, consiste numa simples fórmula melódica pentacordal (com ornato superior) reiterado obcessivamente, o que, associado ao ritmo trepidante dos adufes, nos transporta de certo modo a um ambiente ritual ou coregráflco "africano".

13. CANTIGA DA RODA
Canto de trabalho recolhido em Dornelas do Zézere (Pampìlhosa da Serra, Coimbra). Como canto funcional,
encontra-se em vias de total extinção, devido ao rareamento progressivo das "rodas", engenhos destinados à irrigação dos campos (as poucas ainda existentes são quase que exclusivamente movidas a motor).
As rodas são de dois tipos, uma de maior diâmetro, espalhadas pela margens do Zézere e movidas pela corrente do rio; outras, de diâmetro inferior, erguidas sobre poços e trabalhando sob a pressão dos pés de um homem ou de um mulher, os quais, para quebrar a monotonia e rudeza da tarefa, entoam horas seguidas a canção aqui registada, Trata-se de uma bela melopeia modal, de um modallsmo "orientalizado" pela presença do intervalo de segunda aumentada. Entoada por urna voz feminina (a "tocadora" da roda), tem a sua como que contrapartida diafonal na plangente melopeia da nora. A entoação nem sempre é segura, em consoquência do penoso esforço físico exigido pela manobra.

14. SENHORA SANTA COMBINHA
Canto de romaria recolhido em Igreja de Cambra (Vouzela, Viseu). A Senhora Santa Combinha é porventura a mais afamada romaria da região, e o canto é ouvido no dia da sua festa, 20 de Julho, e ainda no dia da festa móvel do Espírito Santo. Entoado por mulheres, inicia-se monodicamente e prossegue em organum a 4 vozes (começo - descante grosso - alto - descante fino). Ritmo silábico uniforme dos cantos firmes (e, por via de consequência, da própria polifonia), apenas entrecortado pelo característico hoqueto, ou assim também chamado "suspiro medieval". Advirta-se que, na segunda estrofe do canto, o diapasão das informadoras sobe de um semitom, percalço que não vai além de um acidente fortuito de entoação.

15. O CARVALHAL
Trecho de música instrumental tocado tradicionalmente na Quarta-feira de Cinzas em Souto da Casa (Fundão, Castelo Branco). Esta tradição acha-se ligada a sucessos ocorridos na localidade em fins do século passado. O Carvalhal era uma extensa zona da serra partilhada entre a Irmandade do Santíssimo, a casa Garrett e o povo de Souto da Casa que, numa Quinta-feira de Cinzas, resolveu victoriosamente, e não sem violência, uma questão com a casa Garrett. A comemoração anual desta vitória perdeu muito das suas características primitivas, tal como a habitual pregação do regedor local, que terminava com estas palavras: "O céu é de quem o ganha e a terra de quem a amanha" (6). No entanto, perpetuou-se a peregrinação ao Carvalhal, com a "música" à frente a tocar de manhã à noite, num ambiente de fraternal alegria, donde surge de tempo a tempo a pergunta: "De quem é o Carvalhal?" com a resposta colectiva: "É nosso?". A "música" compõe-se de dois bombos, duas caixas, pratos, ferrinhos e um pífaro de ferro. Como se vê (e como se ouve na gravação), um curioso espécimen de "música turca" - em todo o caso e de certo modo, na tradição dos "Zé Pereiras" do Norte do Pais. Os brados intercalados acrescentam-lhe uma nota de vivaz colorido.

16. SENHORA DA POVOA
Canto de romaria recolhido em Atalaia do Campo (Fundão, Castelo Branco). A Senhora da Póvoa, cuja festa se realiza no Domingo de Pentecostes, tern o seu santuário em Vale-de-Lobo. A romaria perdeu muito da sua antiga concorrência. (No seu livro Cantares do Povo Português, Rodney Gallop assinala que, em 1919, se verificou uma afluência de 50.000 peregrinos). O canto insere-se perfeitamente no tipo já descrito no n° 12.

17. CANTIGA DA CEIFA
Canto de trabalho monódlco, do tipo dos "Cantos de ar livre". A bela melodia é um simples pentacórdio frígio abundantemente floreado, aparentada a tantos outros "cantos de ar livre" que têm o seu habitat próprio na bacia do Mediterrâneo. Foi recolhido em Penha Garcia (Idanha-a-Nova, Castelo Branco).

18. CANTO DA PAIXÃO
Canto religioso, utilizado sobretudo como canto de trabalho durante a Semana Santa e, por tal, mais

conhecido pela designação de "Paixão do campo". Em comum modo maior e menos floreado do que o anterior, pertence contudo ainda ao tipo dos "cantos de ar livre". Foi recolhido na Aldeia de Joanes (Fundão, Castelo Branco).

19. DEVOÇÃO DAS ALMAS
Canto de peditório recolhido em Oliveirinha (Aveiro). O "grupo" que o canta costumava sair três noites por semana na Quaresma (mais precisamente: de meados da Quaresma até à Semana Santa) para o entoar às portas das casas da povoação e das povoações vizinhas, Moita e Granja. O "grupo" é formado de dois troços: um de três homens, outro do mesmo número, ou mais. O primeiro, com pendão no meio e lanternas de cada lado, é o que bate às portas, enquanto o segundo estaciona um pouco atrás. No passo do canto "aqui estamos de joelhos" os homens do primeiro troço permanecem de joelhos até ao fim do mesmo. O produto do peditório, dinheiro ou comestíveis, destinava-se a mandar "rezar" um sermão na igreja e outro no cemitério; o que sobrava empregava-se em mandar "rezar' missas. O canto, monódico, é entoado rápida e alternadamente pelos dois coros masculinos. A alternação procede por imbricação, isto é: o final da primeira entrada sobrepõe-se ao começo da segunda, uma e outra constituídas pelo mesmo inciso rítmico que se desenvolve no âmbito de uma fórmula hexacordal menor com ornato superior e omissão do 2° grau. Entre as duas exposições do canto, a oração recitada do Pai Nosso e Avó Maria, ainda a cargo dos dois coros alternados,

20. OLÉ, ó SENHORA MÃE
Canto de trabalho entoado por vozes femininas. Foi recolhido em Talhadas (Sever do Vouga, Aveiro) e canta-se quando, no fim de cada eito, se sacode o centeio para lhe tirar as cascas. Como em outras espécies aqui registadas, o canto começa monodicamente e prossegue em organum de terceiras e quintas paralelas (baixo-2" voz - falsete).
21. SÃO JOÃO
Canto religioso entoado em gymel (com cadência intermédia na quinta) por vozes femininas. Foi recolhido em Alde (Gouveia, Guarda).

22. SENHORA SANTA LUZIA
Canto de romaria recolhido em Aldeia Nova do Cabo (Fundão, Castelo Branco), A romaria de Santa Luzia realiza-se em meados de Setembro em redor da ermida situada na vizinhança de Castelejo (Fundão). Outrora muito concorrida, acha-se hoje em franca decadência, a sua principal atracção consistindo nos conjuntos instrumentais (bombos, caixas e pífaros), designados localmente apenas por bombos e entre os quais se distinguem os "bombos" de Lavacolhos. O toque de Santa Luzia, dito "Ao alto", anima, com as suas cantigas entremeadas, a festa da oraga da região. O belo canto aqui registado acha-se caldo em desuso. Entoado por vozes femininas, pertence ao género dos "cantos de adufe", com a diferença, porém, que, ao contrário das outras espécies similares da mesma região (n° 12) e (n° 16), este é cantado polifonicamente a 3 vozes, numa variedade de fabordão.

23. ABOIO
Canto monódico de trabalho entoado por uma mulher. Utiliza-se na condução do gado, rebanhos, etc. e foi recolhido em Manhouce (S. Pedro do Sul, Viseu). O canto - uma como que lenga-lenga de carácter quase infantil - é intercalado por "falas" dirigidas ao gado; todavia, as mesmas "falas" inserem-se perfeitamente nas inflexões da singela melodia, de sorte que canto e "fala" formam indissolúvel unidade contextual. De notar o como que fenómeno de mimetismo observável em certos momento da "fala' e em que esta imita o balido das cabras.

24. ALELUIA
Canto religioso recolhido em Igreja de Cambra (Vouzela, Viseu). Ouve-se na igreja, da Páscoa ao Espirito Santo, e pelas ruas, quando o pároco anda a "tirar
o folar". De uma expressão larga e severa, é entoado polifonicamente por vozes femininas. Proposta monódica de carácter salmodial, resposta em organum a 4 vozes (começo - descante grosso - alto - descante fino).

25. CANTIGA DO ENTRUDO
Também popularmente designada por "António Sacoto", canta-se pelas ruas na altura do Entrudo e foi recolhida em S. Miguel d'Acha (Idanha-a-Nova, Castelo Branco). Trata-se de mais uma "cantiga de adufe" entoada por mulheres. A melodia nas vozes graves é redobrada à oitava superior por três vozes agudas (fino). O carácter primitivo do canto, circunscrito a uma incisiva fórmula pentacordal, a sua modalidade "exótica", o ritmo persistente do adufe, trazem-nos ainda à ideia sugestões de músicas africanas.

26. CANTIGA DA SACHA
Canto de trabalho recolhido em Aldeia Nova do Cabo (Fundão, Castelo Branco). Entoado por vozes femininas, começa monodicamente e prossegue numa vibrante harmonia de terceiras com cadência intermédia à quinta. É o tipo mesmo de muitos outros cantos ligados às fainas agrícolas (sacha do milho, colha da azeitona, etc.) frequentes na Beira Baixa.

27. CANTIGA DE NANAR
Recolhida em Cercosa (Vouzela, Viseu), é uma singela melopeia que, num ritmo funcional, se desenrola no estreito âmbito de uma terceira maior mas a que a inflexão do como que estribilho à terceira menor inferior da tónica (mi bemol) complementa com ingénuo encanto.

28. A TIA BAPTISTA
Canto devocional recolhido em Aldeias (Gouveia, Guarda), A Tia Baptista teria sido a Madre Soror Baptista do Céu Custódia, do mosteiro da Madre Céu, (Vinhó, Gouveia), extinto em meados do séc. XIX. Segundo um manuscrito bastante deteriorado conservado no Museu de Gouveia com a data de 1778, teria nascido em 1679. Este manuscrito, atribuído à escrivã do mosteiro, abadessa Francisca Bernarda das Chagas, inclui textos diversos que teriam sido ditados ou escritos pela Tia Baptista: Cantigas ao Menino, Cantigas para arrolar o Menino, Colóquios com o seu Menino, Novena ao Menino, Orações, etc.. Com efeito, a Tia Baptista teria tributado afectuosa devoção a uma imagem do Menino Jesus, que vestia, pintava, amimava. A apelação de Tia Baptista proviria, segundo reza o manuscrito, do facto de ela própria à hora da sua morte ter rogado que todas as professas do mosteiro lhe chamassem tia, "porque se se visse diante de Deus queria pedir por todas as sobrinhas". Ao seu trespasse teria acudido grande afluência de povo, verificando-se numerosos casos de milagres. É festejada em Aldeias no dia 18 de Maio com cantigas como a que aqui se regista, cantigas que consta terem sido outrora acompanhadas a pandeiro. Em Vinhó recolhemos a informação de que as ditas cantigas acompanhadas a pandeiro eram dançadas: uma dança circular com lançamento de cântaros de uns para outros dos participantes. ATia Baptista é ainda invocada como casamenteira pelas raparigas que, dias antes da sua festa, cantam no campo as cantigas que lhe são consagradas. A espécie compendiada é uma fresca canção em maior e balanceado ritmo ternário (possivelmente reminiscente da antiga dança) que, cantada por vozes femininas, afecta a forma de um saboroso organum a 4 vozes (encher - fala fora - erguer - guincho).
Fernando Lopes-Graça Michel Giacometti “

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