João Vaz de Carvalho, vencedor da Bienal Internacional de Ilustração para a Infância 2005 e de Concursos nacionais, natural do Fundão, afirma-se como grande Ilustrador. Nem sempre se dá o devido valor a estes artistas gráficos, que com a sua arte valorizam e recriam textos e que hoe têm um papel decisivo no mercado livreiro. Como beirões, teremos que nos orgulhar do seu trabalho.
PÚBLICO - EDIÇÃO IMPRESSA - PÚBLICA
Director: José Manuel Fernandes
Directores-adjuntos: Nuno Pacheco e Manuel Carvalho
POL nº 5719 | Domingo, 20 de Novembro de 2005
É um pecado não partilhar o humor
Pintor há 20 anos, João Vaz de Carvalho venceu a Bienal Internacional de Ilustração para a Infância 2005, mas não acredita que se ilustre para as crianças. As diferenças que hoje encontra entre a pintura e a ilustração são apenas de escala e de suporte. E o que mais faz é ilustrar sem texto.
Subverter as ideias e as coisas, desmontá-las com humor, divertir-se e divertir é o que faz João Vaz de Carvalho quando desenha. "Se temos a felicidade de nos divertirmos e a capacidade de ter humor, é um pecado não usufruir disso. E partilhar." O vencedor da Bienal Internacional de Ilustração para a Infância 2005 (Ilustrarte) não acredita que se ilustre para as crianças. Ilustra-se, simplesmente: "Ou se tem a capacidade de se comunicar com elas ou não." E está convencido de que os miúdos, perante um desenho, não têm qualquer expectativa: "Uma criança não espera nada de uma ilustração. A criança recebe [algo], se aquilo tiver capacidade para chegar a ela."
Com raízes rurais, natural do Fundão, Beira Baixa, conta como a sua infância foi passada em quintais e quintas. "Absorvi aquele ambiente e aqueles objectos e só me dei conta disso muito tarde. Mas essa presença é muito forte no meu trabalho. E isso passa para as crinças. No momento em que eu recebi aquelas informações e emoções, eu era criança. Não posso dizer que é uma emoção universal, mas pelo menos posso dizer que é comum."
Objectos quotidianos a dançar na cabeça de bonecos narigudos e de pernas fininhas é uma das suas imagens recorrentes. E é fácil sorrir-se diante delas. "Se não se tratar de uma patologia, há dramas que só existem na cabeça das pessoas. Temos de descobrir o lado divertido e positivo das coisas. E rir."
Pintor autodidacta, tem 47 anos e importa da pintura a técnica que usa para ilustrar. Mas não foi sempre assim. "Eu tinha algum temor em transportar para a ilustração a minha linguagem da pintura. Achava que estava a diminuí-la. Ao mesmo tempo, na ilustração, não sentia ter liberdade para executar plenamente, para me pôr todo ali. Como dependia de outros, nunca tive coragem de a abordar com a mesma liberdade que abordo as minhas histórias."
Procurou então, durante algum tempo, criar uma distância entre a pintura e a ilustração, "na pintura havia um lado experimental mais presente e mais forte". Há quatro ou cinco anos, rompeu com isso. "Era uma estupidez completa." E percebeu: "O meu trabalho é aquele, independentemente de ter texto ou não de alguém. Sou eu. Tenho de me entregar por completo àquele trabalho, seja ele de raiz da minha autoria ou de outra pessoa qualquer." A viragem deu resultado.
Antes, quando se tratava de ilustração, desenhava a lápis e depois passava para ecoline (aguarela líquida) sobre papel. Uma técnica "mais rápida e com um resultado plástico diferente". Agora, passa a acrílico, como na pintura. "Foi um salto brutal, as coisas enriqueceram imenso." Sente-se hoje mais identificado com o que faz como autor de ilustrações do que antes. "É mais uma diferença de dimensão e de suporte do que de discurso. A ilustração é no papel e a pintura em tela."
No caso da Ilustrarte, apresentou inéditos. E explica que podiam ser perfeitamente trabalhos finais de telas suas, mas transportou-as para uma dimensão mais pequena e para o suporte papel. "Gosto das duas coisas (pintura, ilustração), mas na pintura há um desgaste maior. Na ilustração, o processo é mais pacífico, mais fácil, até do ponto de vista físico. A escala é outra, trabalha-se com estirador."
João Vaz de Carvalho teve várias experiências profissionais, trabalhou num estúdio de gravação e num atelier de escultura em Coimbra (do artista plástico Vasco Berardo), mas há 20 anos que se dedica exclusivamente às artes. "Foi um salto complicado, no escuro. Mas não me arrependo, faço o que gosto. O meu trabalho desde o início foi muito bem aceite pelas pessoas."
Tem um longo percurso de colaboração com galerias (Novo Século, Trema e Altamira, de Francisco Paulino) e conta com um público fiel, "alguns fãs na arquitectura e no design de interiores". E sempre que expõe, "quadros que podem ter 1x20m por 1x20m", vende as exposições completas.
A passagem para ilustração deu-se numa dessas mostras. A então directora da revista "Marie Claire", a jornalista Maria Elisa, achou a sua pintura muito ilustrativa e convidou-o para umas experiências naquela publicação. "Nunca mais parei. Agora tenho trabalhado com o "Diário de Notícias" e fiz, há pouco tempo, uma capa da revista "Actual" do "Expresso"."
Nestes trabalhos em que o ponto de partida é um texto de alguém, procura não se aprisionar ao que está escrito. "Há um processo de interiorização e de depuração, que leva algum tempo, fica depois o essencial. Mas procuro nunca me prender muito ao texto." Acredita que o papel do ilustrador é acrescentar alguma coisa às histórias, "mas algumas têm mais que ver connosco, entramos mais facilmente naquele espírito, comunicamos mais com aquele discurso, outras menos".
O pior de tudo é os autores darem sugestões e dizerem que "gostavam de ter uma coisa assim, para uma capa, por exemplo". Às vezes isso acontece, até com pessoas conhecidas: "É terrível porque ficamos limitados à partida, ficamos reféns do que o autor imaginou na cabeça dele. Coisa que nós nunca vamos conseguir atingir."
Mas, afinal, o que é ilustrar? "Ilustrar é fazer mais uma história, é inventar mais uma das minhas histórias, mesmo que tenha como suporte a ideia de outra pessoa."
Realça mais uma vez o lado humorístico forte no trabalho que cria e diz ilustrar-se a si próprio, pelo que qualquer semelhança entre ele e os seus bonecos não será pura coincidência. "Os pintores são ilustradores de si próprios e dos seus próprios mundos. Usam todos os recursos e dispõem de total liberdade. Eu ilustro sem texto. E divirto-me imenso."
Recorda uma expressão que o seu amigo escritor António Avelar Pinho (co-autor do Clube dos 4) criou para ele: "Um escritor mascarado de pintor." E justifica-a: "Eu pinto histórias, seja na pintura ou na ilustração. Só que na ilustração tenho as histórias dos outros e na pintura é a minha história."
É metódico e passa muitas horas fechado no atelier, na Parede, "sozinho, isolado, um bicho do mato". Esta rotina é interrompida para levar as filhas à escola (uma de dez anos e outra de oito) e, ao fim do dia, para a logística familiar. "As semanas repetem-se assim. A minha vida é a pintura e a ilustração."
Ser seleccionado pelo júri da bienal, como o foi há dois anos, bastava-lhe, mas ser escolhido como o melhor entre 920 trabalhos de 50 países deixou-o surpreendido e contente. "Já teve efeitos": foi contactado por editoras espanholas da área infanto-juvenil e está em negociações para alguns projectos. Além do reconhecimento nacional, agrada-lhe a visibilidade internacional que a Ilustrarte faculta, "afinal, o catálogo vai viajar pelo mundo". Os seus bonecos também.
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