quinta-feira, junho 17, 2004

Para informação dos leitores transcrevo o conteúdo do Guia de Portugal, editado pela FCG, referente à descrição da Serra da Gardunha, transcrita de uma descrição do Padre M. Martins, publicada como suplemento à revista Brotéria, numa edição de 1910. Como é sabido a revista Brotéria iniciou a sua publicação em 1902, por iniciativa da comunidade científica que na altura desenvolvia actividade de ensino e de investigação no Colégio de S. Fiel. Esta é, porventura, a Revista científica de maior nomeada e de reconhecimento internacional mais significativo, até agora editada na Beira Interior. Nos números publicados com uma certa regularidade até 1910 é possível encontrar vários trabalhos científicos, no domínio das Ciências Naturais, sobre a região em que se inseria o Colégio de S.Fiel e também a inserção de algumas fotografias, recurso já então utilizado com certa frequência, da região. É incrível, que se tenha deixado passar o 1º Centenário do início da publicação da Revista, sem que a comunidade científica da região tenha promovido qualquer comemoração ou realizado Seminários sobre o papel da mesma na divulgação da ciência. Recorde-se que o Colégio de S.Fiel, conjuntamente com o de Campolide, eram escolas de ensino secundário, dirigidas pela Companhia de Jesus, onde na altura, se praticava um ensino avançado. Em S.Fiel formou-se o espírito científico e de investigação de Egas Moniz, que lhe permitiu criar as bases que o conduziriam ao Prémio Nobel da Medicina. Algumas das suas férias de verão foram utilizadas para efectuar estudos nos seus Laboratórios, dos mais avançados, na altura.


in: Guia de Portugal, FCG, 2ª Edição, III Volume, 1985
BEIRA BAIXA

SERRA DA GUARDUNHA
pag.711
SERRA DA GUARDUNHA (I)

«A Serra da Guardunha tem como ponto culminante a Pirâmide ou marco geodésico levantado em meados do século passado, a 1223 metros acima do nível do mar. E dessa altitude se aproxima boa parte superior do maciço da serra, assim como a maior parte do seu dorso, que se ergue a mais de 100)0 metros. É toda a serra de forma assimétrica e muito caprichosa, o que dificulta ou impossibilita uma descrição dela aproximada. Predomina, contudo, nela a forma alongada em todo o seu dorso, no rumo leste-oeste. Este começa na Paradanta em terreno xistoso onde se empina quase a prumo; e segue depois para o oriente en terrenos graníticos desde as encostas do Casada Serra até à notável vila de Alpedrinha. Entre estes dois pontos é que se encontra o espinhaço ou dorso principal da serra, granítico, tortuoso, por vezes alcantilado e intransitável, ainda aos serranos mais arrojados. Pois naqueles sítiQs íngremes e talhados a pique topam-se grandes penhas e amontoados de massas graníticas, tão altas e de tal modo sobrepostas que não há ser vivo que lá possa trepar, a não ser valendo-se das asas.
«Junto de Alpedrinha termina o terreno granítico e recome-am os terrenos câmbricos. Como separando estes dois terrenos do dorso abre-se uma garganta ou desfiladeiro, entre aquela povoação e a de Alcongosta, passa
quase forçada, antes da viação moderna, para as gentes que do sul se dirigiam para o norte ou regiões do Fundão, da Covilhã, ou para mais lone. Ainda hoje se vêem nela os restos de empedramentos duma estrada antiga, que ao sul vinha a passar perto de Alcains, a julgar pela semelhança dos materiais entre os dois pontos. Desde a garganta de Alpedrinha para o oriente prolonga-se a serra em lomba elegante e formosa no aspecto, por terrenos xistosos, por entre Vale de Prazeres e o Alcaide até ao Carrão, onde volta ainda para nordeste. Toda esta cumeada desde a Paradanta não terá menos de 20 km de extensão; assim como toda a base da serra em volta não será inferior a 60 km. Não se farta a vista de contemplar essa mole imensa. Uma circunstância vem dar mais realce e graça a este relevo montanhoso: é a constituição e natureza diferente dos dois terrenos, um granítico outro xistoso de que ele se compõe, ambos muito distintos na forma, estrutura, e até na vegetação diversos. Assim, pertencem a terrenos graníticos o maciço principal da serra com a Pirâmide e seus pontos culminantes e todo o bojo enorme compreendido entre Alpedrinha, Louriçal e Casal da Serra e a maior parte do seu dorso. Mas toda essa mole tem como recosto por todos os lados, menos pela frente, graciosos relevos kistosos, que pelas formas arredondadas e elegantes, já formando lombas alongadas, já ondulações a descer, ornadas de vegetação esplêndida, fazem curioso contraste cone os alcantis e rochas desnudadas e abruptas da parte oposta. Realmente recosto mais ele ante e formoso não podiam ter; sobretudo para os lados do Fundão e Alia Nova, aquelas escuras maças plutónicas, tão severas no aspecto e caprichosas tias formas e recortes, como alterosas e imponentes na estrutura.
«A vertente norte, da serra, excepto na parte mais alta, é pré-cambrica em toda uma extensão de mais de 20 km, assim como as lombas que se prolongam ao oriente e ocidente dessa parte alta. Aqui começa para o ocidente a vastidão de terras onduladas. Nesta encosta ao lado do monte de S. Gonçalo, tem seu princípio a Mata do Fundão, manto de vegetação esplêndida. Faz esta um estranho e notável contraste com a nudez da outra parte da serra que no alto e atrás se avista e forma o dorso da Guardunha granítica.
«As formas e aspectos, com que a Guardunha se nos oferece, são variadíssimos, segundo os diversos pontos de vista donde a contemplam os observadores. Do lado de S. Fiel semelha uma grande pirâmide, com o vértice no Castelo Velho e a aresta mais alongada a estender-se pelas quintas da Serra e do Pinheiro. Do lado de Castelo Novo já semeIha um ângulo diedro formado pela serra de Alpedrinha e a encosta da aresta anterior que dá para a Alpeadra; e mais adiante imita uma grande concha em volta daquela formosa povoação. E já muito outro o aspecto da Guardunha vista duma graciosa baixa situada entre o Louriçal do Campo e o lugar da Torre na qual a ribeira de Ocreza, deixada a natural braveza e índole serrana, mansamente flui por entre beiradas férteis, orladas de amieiros e arbustos viçosos. Está ela fechada em volta, a modo de ferradura, menos pelo sul, pois tem na sua frente o enorme bojo ou larga en
costa da serra; pelo ocidente, com o rumo norte-sul, ergue-se -lhe a mais de 700m um extenso contraforte, articulado na serra junto à Paradanta, em cuja vertente ocidental assenta a vila de S. Vicente da Beira; e pelo oriente encontra-se a raiz da Guardunha entre os ribeiros do Vermelhal e do chamado Barroco do Negro, onde está S. Fiel.
«Toda a serra se apresenta constituída de viva rocha ou em lajedos em escalões ou em saliências de diferentes modos.
Numas partes, porém, essas massas erguem-se em penhascos e amontoados de fragas, sem ordem nem simetria, espalhados pelas encostas, noutras partes são sobrepostas de camadas de penedia solta que uma à outra se segura em equilíbrio nos pendores da serrania, noutras enfim formam ou os espinhaços alcantilados que afloram nos pontos cuhninantes ou as arestas recortadas que fenecem nas encostas ou vêm morrer à planície. Se as serras graníticas, pela variedade de formas sobrelevam às outras de natureza e constituição geológica diferente, a da Guardunha, então, parece caprichar em se mostrar neste ponto extravagante e original mais que as outras. Além de rochas vivas, com que em lajedos e escalões se nos apresentam, completamente desnudados, sobretudo em sítios abruptos e grandes pendores, encontram-se essas massas formando canchais, in estos, alcantis, morros ou cabeços, penhascos, penhas e picotos; bem como inúmera penedia e fragas de mil formas e tamanhos, dispersas por toda a serra. Os canchais encontram-se mais ou menos por toda a serrania, mormente de 800m para cima. Os agentes exteriores auxiliados pelo grande pendor das encostas, pelo codâo, pelo perpassar contínuo dos gados, assim como pelos amanhos para algumas sementeiras de raquítico cereal, arrastaram a terra vegetal que revestia a rocha, e inutilizaram aquele solo para qualquer cultura. Os infestos ocupam os declives mais íngremes, sobretudo na base dos píncaros e cabeços ou penedia mais empinada. São constituídos de fragões e pedregulhos, juntos, encostados ou sobrepostos, com seus vãos, aberturas e lapas escavadas pelas águas que tornam os sítios intransitáveis.
«Uma das formas de granito mais curiosa é a de monolitos ou isolados pelas chapadas e encostas, ou agrupados ou encostados. São estes fragões, muito próprios e característicos das serras graníticas e grandemente curiosos, e mais na Guardunha. O tamanho e peso quase incalculáveis, a situação, a variedade de contornos e configuração excitam a atenção e fazem maravilhar. Assim, uns imitam monstros marinhos como baleias na forma alongada, e outros, grandes esferas, cilindros ou pirâmides; e muitos há que na cabeça e corpo semelham muito bem animais domésticos ou seres humanos. E é tal a variedade destas formas que chegam a representar calhamaços de grossas folhas ou canhões assentados no alto de torreões graníticos, como se vêem na encosta de Castelo Novo. Uns estão em chão terroso, outros em lajes; uns têem situação estável e assentam em vários pontos, outros parecem terem-na instável e abalarem-se facilmente do seu ponto de apoio.»
(1) Transcrição parcial da monografia A Serra da Guardunha (separata da rev. Brotéria, 1910, de P.` M. Martins.

Sem comentários: