O que fazer para maximizarmos a valorização do nosso património?
in: Jornal do Fundão
SECÇÃO: Entrevista
«Património é o chamariz das terras do interior»
António Martinho Baptista é reconhecidamente o maior especialista nacional em arte rupestre, tendo estado envolvido nas maiores descobertas que se fizeram, neste campo, em Portugal nas últimas décadas, como as figuras do Vale do Tejo e de Foz Côa. Fica o testemunho de quem dedica a sua vida a trazer até nós o passado. Um arqueólogo que faz da profissão uma forma de vida
JORNAL DO FUNDÃO – A terceira gravura de um cavalo paleolítico que se encontrou na Barroca é similar às outras duas já descobertas?
ANTÓNIO MARTINHO BAPTISTA – Sim, é similar às outras duas que estão no Poço do Caldeirão. Uma das rochas tem cavalos com um estilo perfeitamente idêntico. Não tenho a menor dúvida em considerar este achado como sendo do Paleolítico Superior.
Portanto, tem uma datação de…
15, 20 mil anos. Ele tem ainda um estilo “solutrense” – um palavrão que nós utilizamos na arte paleolítica – o que significa que poderá andar entre 18, 20 mil anos. Foi a cronologia que eu atribuí aos cavalos do Poço do Caldeirão, que estão a 300 metros deste último achado.
É natural que se venham a encontrar mais figuras rupestres nesta zona do Zêzere?
Sim, é natural. Estas gravuras estão em rochas com poucos motivos; é difícil detectá-los. As rochas estão sujas, têm líquenes e a água também subiu um pouco devido à mini-hídrica.
Que trabalho é que a sua equipa esteve a fazer com este terceiro achado?
Fizemos um decalque directo. Normalmente fazemos isto à noite. Esta como é uma gravura simples, tentámos fazê-la de dia, mas nós nunca ficamos satisfeitos com os resultados que temos à luz do dia. Preferimos sempre fazer isto com luz rasante e artificial. É natural que ainda completemos esta figura, porque temos o máximo de rigor com os levantamentos que fazemos.
Ao longo da sua carreira de investigador, tem notado, por parte das populações, uma maior pré-disposição para apreciar e defender o seu património?
Curiosamente até foi na Barroca que eu notei maior investimento da população no trabalho que aqui fizemos já há dois ou três anos. Nos levantamentos que fizemos à noite tivemos sempre imensa gente à nossa volta. Ajudavam--nos imenso, traziam-nos comida, etc… A partir do momento em que explicámos a importância e a antiguidade das coisas que aqui tinham, eles passaram a ser os maiores defensores do seu património. Nós estudamos as coisas, valorizamo-las, evidentemente, em termos científicos, procuramos salvaguardá-las, mas as populações são, sem dúvida, as melhores defensoras do seu património e mais ainda nestas terras do Interior. Na Barroca, por exemplo, é a coisa mais antiga que há aqui. Eles tomaram em mãos isto e eu achei, de facto, uma coisa espantosa. Em mais nenhum sítio notei um investimento tão grande da população inteira, acarinhando o nosso trabalho de uma maneira espantosa.
Hoje ainda se levantam questões como a de se, em alguns casos, o património poderá ser compatível com interesses económicos…
São compatíveis e de que maneira. O desenvolvimento do Interior passa pelo facto de se valorizar o património histórico-arqueológico, porque é isso que, hoje em dia, valoriza sítios como a Barroca. A valorização do património é o principal chamariz destas terras do Interior. Veja o caso de Foz Côa, que é o mais conhecido. Quem pôs o nome de Foz Côa conhecido em todo o mundo foi a arte rupestre. Isso de a defesa do património ir contra interesses económicos... mas que interesses económicos? O futuro da nossa civilização está na procura das nossas raízes históricas e na sua valorização. Há tempos li um artigo muito interessante do ex-ministro Campos e Cunha, onde ele considerava que no ambiente de globalização que vivemos hoje, os dois aspectos que podem diferenciar Portugal e valorizar-nos no mundo são a Língua e o património histórico-arqueológico.
Em Espanha, neste campo, as coisas assumem outra metodologia…
Nós temos tido alguns contactos com, por exemplo, a Junta de Castilla y León, e eles têm um investimento brutal na área do património. Tive a oportunidade de participar, há pouco tempo, num colóquio em Valladolid e o investimento deles na área do património é espantoso. Têm um património histórico riquíssimo, que valorizam de uma maneira absolutamente notável. Não é só ali que está a procura das tais raízes de que falava há bocado, mas o chamariz é um dos motores do desenvolvimento económico do interior peninsular.
Qual é o orçamento deles neste campo?
Têm um orçamento fortíssimo, na ordem das muitas centenas de milhões de euros. Eu fiquei espantado com o orçamento que foi apresentado num plano quinquenal. É, provavelmente, superior ao orçamento do nosso país na área da cultura.
As descobertas de arte rupestre também têm, ao que sei, outro tratamento do outro lado da fronteira…
Sim, há uma lei espanhola que classifica imediatamente como bem cultural a arte rupestre identificada. Depois sofre um processo de classificação mais fino, digamos assim. A arte rupestre é muito importante em Espanha. No fundo, a arte rupestre é a escrita da pré-História. É o legado mais espiritual que o Homem pré-histórico nos legou e como tal é imediatamente classificada como bem cultural.
Ainda se comove com as novas descobertas que faz, depois de décadas de trabalho nesta área?
Claro. Então quando se descobre arte paleolítia. Apesar de tudo, a arte paleolítica ao ar livre continua a ser uma novidade importante. Portugal é, neste momento, o país da Europa que tem mais arte paleolítica ao ar livre. Ela tem sido encontrada, nomeadamente, junto aos nossos rios do Interior, infelizmente, muitos deles, cobertos por barragens… Quando descobrimos uma figura nova ou se identificou, como foi o caso da da Barroca, ainda que seja uma única gravura, é um testemunho fantástico que nos emociona sempre. É sempre emocionante sermos nós a contribuir para que esta gravura da Barroca ganhe, e ganhará, uma nova vida, não apenas através das publicações científicas que vamos fazendo, mas pelo tal dinamismo económico que pode trazer e trará, seguramente, a estas zonas do Interior.
Há alguma razão ou razões específicas para que Portugal seja hoje o país com maior acervo de arte rupestre ao ar livre?
Repare, a Europa paleolítica, ao contrário do que as pessoas pensam, não estava toda coberta pelo gelo, nomeadamente no último período da época glaciar. Nestas zonas não havia glaciares ou havia línguas glaciares pequenas, como a da Serra da Estrela. Portanto, é natural, que os nossos rios tenham muitas outras gravuras que precisam de ser descobertas. Durante muitos anos, não se procurou, não se descobriu e não e sabia. Hoje, temos a certeza que há muito mais gravuras em Portugal. Na Europa paleolítica é natural que sítios como a Península Ibérica, onde os glaciares tinham uma expansão muito menor, tenha sido uma causa importante para que estas gravuras tenham sido feitas e, felizmente, resistiram. E a maior parte estão em xisto e isso é muito importante, porque se estivessem noutro tipo de rocha, teriam sido erosionadas e desaparecido mais rapidamente. Felizmente o xisto conserva muito bem estas gravuras.
O que levava o homem paleolítico a gravar estes motivos?
É a tal “inquietação”. É esta inquietação que, no fundo, nos distancia, nos diferencia de toda a restante criação. O homem paleolítico tem as mesmas capacidades de abstracção, de pensamento. É um Sapiens Sapiens, como nós somos, e tinha, com certeza, as mesmas necessidades que nós. A tecnologia era outra e a arte rupestre, digamos, que é a primeira invenção, se assim se pode dizer, do grafismo da escrita, não alfabética, evidentemente. O longo período do paleolítico superior é caracterizado por um tipo de sociedade que nós chamamos de caçadores- -recolectores e o animal é o centro da acção, o elemento mais importante e é isso que, no fundo, é a arte paleolítica, uma arte zoomórfica. Essa inquietação do homem paleolítico levou-o a gravar e a pintar milhares e milhares de sítios. É através destes vestígios que conseguimos saber os anseios do homem paleolítico, sejam eles de carácter religioso ou meramente lúdico. A arte rupestre é isto: o último vestígio do pensamento abstracto, do pensamento simbólico.
E porque esta fixação em gravar em rochas junto às margens dos rios?
Os rios sempre foram, como eu gosto de lhes chamar, as auto-estradas da pré-história. Permitem a facilidade de deslocação, concentram também uma certa vida económica, digamos assim. São fonte de vida, quer pelos peixes, quer pelos animais que precisam de água. Os rios concentram, portanto, uma grande parte da vida ao longo da pré-história. É natural que ao longo das margens dos rios, as rochas, nomeadamente, dos rios que cortam zonas de xisto, tenham sido eleitas como os sítios onde seria feito aquilo a que nós chamamos a arte rupestre.
Ao logo de toda a sua carreira, qual foi a descoberta que mais o impressionou?
Podia-lhe dizer que foi a arte no Vale do Tejo. Foi aí que eu comecei. É um sítio fantástico, com dezenas de milhar de gravuras pós-paleolíticas. Digamos que a minha emoção começou aí. Mas não deixo de me emocionar sempre que descubro uma coisa nova. E quando a arte do Côa foi descoberta, eu pude apreciar, verdadeiramente, as maravilhas que lá se guardam. Juntamente com o Vale do Tejo, talvez sejam as duas mais importantes descobertas a que eu estive ligado.
A partir do momento da vossa descoberta e identificação das figuras, o vosso trabalho fica concluído?
Nós também contribuimos para que esse desenvolvimento económico se faça. Estamos sempre disponíveis para participar em colóquios, conferências, na valorização, centros de interpretação. Tudo isso faz parte dessa lógica que hoje o património tem que ter.
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