"Em minha opinião a parte de Portugal que oferece mais rica e interessante variedade de canções populares é, sem dúvida, a Beira Baixa, particularmente nos concelhos de Penamacor, Idanha e Covilhã"
Transcrevo extractos de um etnomusicologo estrangeiro, que se apaixonou por Portugal, investigou, registou e escreveu sobre o nosso País e que descreve de uma forma magistral a riqueza etnográfica da Beira-Baixa. Aqui fica o registo, para nosso orgulho e também para dar a conhecer o trabalho notável que Rodney Gallop, nos anos 30, antecedendo, Jaime Lopes Dias, Ernesto Veiga de Oliveira, Michel Giacometti e Fernando Lopes Graça, no levantamento etnomusical da Beira-Baixa.
CANTARES DO POVO PORTUGUÊS
Cantares do povo português, estudo crítico, recolha e comentário de Rodney Gallop, trad. de António Emílio de Campos. - Lisboa : Instituto para a Alta Cultura, 1937. - 149 p., [2] f. ; 25 cm
BN M.P. 565 V.
"Não é possível, em Portugal como em outros países, classificar as melodias populares pelas regiões. Até a regra geral de que as cantigas dos montanheses são lentas e tristes, enquanto as da gente da planície, são vivas e alegres, se não pode aqui aplicar. Que há de mais alegre do que as canções que se ouvem nas regioes montanhosas do Minho e de Trás-os-Montes? Que há de mais triste e queixoso do que certas outras, cantadas nas charnecas do Alentejo? O que se pode afirmar é que há regiões onde as canções de baile, generalizadas, se não cantam com exclusão de todas as outras: --- existem ao lado de vestígios de música popular mais arcaica, mais variada, e de interesse musical consideravelmente maior. Esta região é quase exclusivamente a do Leste de Portugal, na raia de Espanha. Apesar de, como veremos, se poder verificar certo grau de influência espanhola em algumas dessas canções, tal influência não é de forma alguma predominante, e precisamente na sua relativa raridade está uma das mais salientes características da música portuguesa.
Em minha opinião a parte de Portugal que oferece mais rica e interessante variedade de canções populares é, sem dúvida, a Beira Baixa, particularmente nos concelhos de Penamacor, Idanha e Covilhã. Não há melhor oportunidade de ouvir canções deste tipo do que uma das grandes romarias arraianas, a de Nossa Senhora do Almurtão, por exemplo, ou de Nossa Senhora da Póvoa.
Devido á grande amabilidade e hospitalidade da Senhora Condessa de Proença-a-Velha pude em 1933 assistir á romaria de N.a Sr.a da Póvoa, no domingo de Pentecostes. A velha cidade fortificada de Penamacor liga-se por cerca de trinta quilómetros de estrada á estação do mesmo nome, no Caminho de Ferro da Beira Baixa. Da sua cidadela pode ver-se não só a serra espanhola da Gata, como a Serra da Estrela, nas faldas da qual a Covilhã verte, como fio de pérolas, a alva cascata do seu casario. O santuário da Póvoa' fica ainda mais 15 km afastado do bulício da vida moderna: - no Val-de-Lobo, por entre montículos arredondados, de cor castanha-esbranquiçada quando cobertos de centeio ralo, ou rica púrpura rosada, se lavrados de fresco. Da pequena capela não se avista construção humana, a não ser as rudes cabanas de pedra bruta, feitas para, uma vez por ano, albergar os vendilhães, na ocasiao em que Nossa Senhora e acordada do seu sono, ao som dos cantares -estrondo dos foguetes tradicionais. Até ha cerca de quatro anos não havia qualquer estrada para Val-de-Lobo e a gente vinha a pé, em pesados carros de bois, garridamente enfeitados para a festa, ou de mula, mulheres à gaupa. E em 1919 houve 5o.ooo peregrinos. Em 1933 muitos ainda vieram assim, mas a maioria transportou-se em automóveis ou auto-ónibus
0 arraial dessa noite foi uma deliciosa sinfonia de musica e movimento. A maioria dos campónios comprara, logo à chegada, adufes: tambores manuais quadrados, constituídos por caixilhos de madeira cobertos' dos dois lados por bem esticadas peles de cabra. Acompanhando-se a si prcprios com ritmado rufar, deram a tradicional volta à igreja, cantando, numa das suas muitas variantes, o monótono hino a N.a Sr.a da Póvoa (n.° 8o).
Este hino corria pelo arraial corno leitmotiv. Poucos momentos haveria em que não fosse ouvido num canto ou noutro da vasta concorrência, com inúmeras diferenças de clave, diapasão e timbre. Um grupo de raparigas, por exemplo, começava, e logo outro retomava o motivo, usualmente noutra clave, misturando as vozes em cânone livre, inconsciente, não governado pelas regras do contaoonto, mas nem por isso menos atraente.
Além do hino a N.a Sr.a da Póvoa ecoavam no ar outras canções. Quando escurecia e se acendiam miriades de luzes, as gentes começavam a dançar, agora aos pares, no gracioso estilo do fandango, logo em roda, de mãos dadas. Algumas destas canções consegui eu transcreva-las (nº 81 a 85), Outras escaparam-me, e, antes que tivesse terminado a minha tarefa, os cantores desapareceram na escuridão.
No dia seguinte, em Penamacor, perguntei por cantores rústicos, mas não foi fácil encontra-los. Apesar da pequenez de Penamacor, deram-me a mesma resposta que em outras partes (por exemplo em Miranda do Douro, 6oo habitantes): - ((Aqui na cidade não, sd nas aldeias». De repente senti que a memória, ao recordar-me a trágica redondilha seguinte, me inspirava a solução:
Quem quiser ouvir cantigas,
Vá às grades da cadeia;
Ouvirá cantar os presos,
As escuras, sem candeia.
P or sorte, a prisão de Penamacor tinha uma janela gradeada, ao nível da rua. A ela me cheguei. Fiz o meu estranho pedido aos vultos que lá estavam dentro. Os presos acabavam de receber o almoço, e, com gentileza infinitamente comovedora, ofereceram-mo através das grades: - «O Senhor e servido?». Quando acabaram de comer, e se persuadiram de que o meu pedido não era graça de mau gosto, cantaram de boa vontade, e, por mais de uma hora, estive desta estranha forma a copiar canção após canção: - as melhores da minha colecção (n.os 64 a 69).
Não foi só em Penamacor que encontrei, na recolha de cantigas, tão generosa e franca ajuda e hospitalidade."
2 comentários:
Escrevi um livro sobre "Tradições de uma aldeia da Beira Interior" e também fiz uma recolha de cantares, que ainda não tive ocasião de publicar. Estou interessada em voltar ao assunto. Que sugestões me pode dar?
Bem haja.
A Tradisom de Braga é a editora recomendada, mas só publicam com co-financiamento institucional.
Outra alternativa é a Alma Azul de Alcains. Espero que isto ajude. Veja também uma referência de um post meu sobre uma monografia sobre Cafede, o Editor é natural de Cafede e com o argumento da Beira Baixa, talvez consiga editar.
Enviar um comentário