segunda-feira, janeiro 05, 2004

Recolha
Catarina Chitas
Uma lição para escutar e aprender
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Por: Domingos Morais
Foi editada uma obra fundamental da cultura popular portuguesa. Vários registos de Catarina Chitas, quase perdidos algures numa cassete audio, foram agora recuperados para CD. Uma obra que fala e canta por si - fundamental e indispensável.

Catarina Sargenta, a Ti Chitas para todos os que tiveram o privilégio de com ela privar, nasceu em Penha Garcia, Concelho de Idanha a Nova, a 30 de Janeiro de 1913.

Este CD é uma lição para quem a souber escutar e quiser aprender. A sua publicação pelo Festival Internacional Cantigas do Maio, na sua XIII edição, visa também homenagear uma das mais distintas cantoras portuguesas de sempre.

Na faixa nº 3 deste CD pode-se ouvir uma canção autobiográfica composta e musicada por Catarina Chitas, onde nos diz:

Toda a vida fui pastora / e sou muito de vontade
Eu nasci p’ra camponesa / não foi p’ra ir pr’à cidade
Guardo as minhas cabrinhas / é uma vida que me encanta
Eu nasci p’ra pastorinha / não foi para ser estudanta
Guardo as minhas cabrinhas / é a minha profissão
Sempre cantando e rindo / estudando a minha canção
Estudando a minha canção / com prazer e alegria
Guardo as minhas cabrinhas / no rochedo de Penha Garcia
Guardo as minhas cabrinhas / com bom leite e bons queijinhos
Passo o meu resto do tempo / a brincar com os chibinhos
E a brincar com os chibinhos / é uma vida que é modesta
O la lai lari ló léla, / não há vida como esta.

Os primeiros registos conhecidos de Catarina Chitas terão sido feitos por Ernesto Veiga de Oliveira e Benjamim Pereira em 1963. Muitos outros registos se foram fazendo, dos quais merecem referência: os de Michel Giacometti em 1970, para a série produzida pela RTP “Povo que canta”, publicado em 1970/1996 - Antologia da Música Regional Portuguesa. Beira Alta. Beira Baixa. Beira Litoral; em 1982 por José Alberto Sardinha, em “Recolhas da Tradição Oral Portuguesa – Beira Baixa e Minho”, e em 1997, em “Portugal Raízes Musicais – nº 4 Beira Baixa e Beira Transmontana”; em 1991, a Câmara Municipal de Idanha a Nova edita um LP com 17 faixas, inteiramente dedicado a Catarina Chitas; em 1992, é editado na Collection Dominique Buscall o CD “Music du Monde – Portugal: Chants et tambours de Beira Baixa”, em que Catarina Chitas canta em nove faixas; em 1994, um CD concebido e realizado por Jacques Erwain, “Voyage Musical Portugal – Le Portugal et les Iles” , que além de incluir duas gravações de Catarina Chitas, tem um depoiamento gravado onde nos diz: “Daqui de Penha Garcia, fala Catarina Chitas. É uma pessoa que não tem estudos nenhuns. Fui criada no campo, a guardar gado, a guardar tudo, a guardar cabras, e porcos, e vacas. E a trabalhar, a ceifar, a sachar o trigo, a arrancar o mato, a fazer tudo. A minha sabedoria é essa. Agora, de então para cá, já fui cozinheira, já fui padeira, já fui tecedeira, já passou tudo pelas minhas mãos. Só estudos da Escola é que nunca tive”.

Muitos outros registos foram feitos, por músicos amadores, estudantes, investigadores e estudiosos, sempre bem recebidos por Ti Chitas que com infinita paciência repetia histórias e canções, convidando-os para sua casa onde lhes dava de comer e por vezes guarida até ao dia seguinte. Foi assim que um dia, acompanhado pela Teresa e pelos nossos filhos Pedro e Tiago, depois de termos conversado e gravado, comemos um frango frito e uma salada de tomate que não mais esquecemos. Muitas destas gravações eram meros registos que nos permitiam recordar e transcrever para os nossos trabalhos o que tínhamos aprendido. Não havia o propósito de vir a editar as gravações, e por isso usava-se equipamento amador.

Foram essas as fontes a que recorremos na escolha dos fonogramas que fazem parte deste CD, e que talvez nunca viessem a ser publicadas pelos defeitos técnicos de captação que terão, mas que o tempo se encarregou de mostrar serem secundários atendendo ao conteúdo nelas revelado.

As faixas nºs 24 e 25 (O Pai da Laurinda e Parabéns e Serenata aos Noivos) foram gravadas por Ernesto Veiga de Oliveira e Benjamim Pereira em 1964. As faixas nº 7 e 23, forma gravadas por Domingos Morais em 30 de Novembro de 1982, quando Catarina Chitas participou na festa da 2ª edição do livro de Veiga de Oliveira, “Instrumentos Populares Portugueses”.

Registe-se a participação de Veiga de Oliveira e de Benjamim Pereira no esclarecimento das canções apresentadas. As restantes faixas fazem parte do acervo da Linha de Acção de Recolha e Estudo de Literatura Popular Portuguesa, hoje designado por Centro de Estudos Prof. Viegas Guerreiro, da Faculdade de Letras de Lisboa, e foram gravadas em 1985 no âmbito do projecto de que resultou a publicação Romanceiro Tradicional do Distrito de Castelo Branco, coordenado pelo Professor Pere Ferré.

Manuel Moreira, o Ti Manel Moreira que acompanha Catarina Chitas nas faixas 24 e 25, era um notável executante de viola beiroa. Dele apenas sabemos o que Benjamim Pereira registou no seu texto “Relato acerca da organização da colecção de instrumentos musicais populares portuguesas”, na 3ª edição de Instrumentos Musicais Populares Portugueses, de Veiga de Oliveira (2000), pp. 30/31, e que transcrevemos:

Em 1964, por ocasião do I Congresso Nacional de Turismo, a Fundação Gulbenkian levou a efeito, com a nossa colaboração, mais uma exposição sobre os Instrumentos Musicais, que contou também com um concerto de tocadores e cantadores populares. A Região da Beira Baixa esteve representada pela tocadora de adufe, Catarina Chitas, que nessa altura nos falou do Manuel Moreira como sendo o último tocador de viola daqueles sítios. Ele vivia no flanco da serra do Ramiro oposto ao de Penha Garcia, o que nos obrigou a contornar essa serra.

O percurso alongou-se, fez-se noite, a estrada deu lugar a uma vereda que o velho citroën 2 cv a custo vencia, com coelhos bravos a saltar à nossa frente, e a toda a volta o silêncio e o negrume total. No momento da desistência lobrigámos uma luzinha – saí do carro e gritei por ajuda para encontrar o Tio Manuel Moreira. Como por encanto, lá do alto uma voz respondeu: "É aqui"! Subimos a encosta e fomos ao seu encontro.

Foi como se já nos conhecêssemos de há longos anos. Apesar de nunca ter saído desse pequeno mundo rural, de não conhecer sequer Castelo Branco, prontificou-se de imediato a ir a Lisboa, dado ir na companhia da Catarina Chitas. Evoco a sua entrada no palco, de calças de bombazina e faixa preta, um sorriso confiante e sereno, a sua belíssima execução musical. Depois de terminar despediu-se do público com um gesto profundamente natural e afectivo, secundado pela saudação "Deus vos abençoe".
Domingos Morais

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