sexta-feira, dezembro 19, 2008

Criou uma editora que enriqueceu o país e o arruinou a ele próprio

O criador de amigos
19.12.2008, Luís Miguel Queirós
Criou uma editora que enriqueceu o país e o arruinou a ele próprio, lançou uma das mais importantes revistas portuguesas da segunda metade do século XX e sonhou mudar a sociedade a partir de um novo cristianismo. O trajecto de Alçada Baptista, o homem a quem chamaram "um criador de amigos"
A cena passa-se em Lisboa, provavelmente no final de 1962 ou nos primeiros dias de 1963. Seis católicos, alguns ainda na casa dos vinte, outros um pouco mais velhos, preparam-se para lançar uma revista e têm de tomar uma decisão difícil: devem ou não pedir a colaboração dos agnósticos Mário Soares e Salgado Zenha? Decidem votar, mas, pelo seguro, rezam primeiro uma Ave Maria, esperançados em que a mãe de Cristo os ajudará a decidir bem. Tenha ou não havido intervenção divina, o certo é que Soares e Zenha foram aprovados.
À distância de quase meio século, o episódio, posteriormente contado por João Bénard da Costa, que foi um dos votantes, parecerá um tanto caricato, mas a publicação em causa, lançada a 29 de Janeiro de 1963 (no dia em que Alçada Baptista fez 36 anos) com o título O Tempo e o Modo, iria tornar-se uma das mais relevantes revistas portuguesas de cultura e política. E a empresa que a suportava, a Livraria Moraes Editora, não só congregava então muitos dos melhores escritores nacionais - na poesia, o seu domínio era mesmo avassalador -, como deu a ler em português alguns dos mais influentes pensadores europeus da época.
Por trás de ambos os projectos - a editora e a revista - estava o mesmo homem: António Alçada Baptista, que morreu no passado dia 7, em Lisboa. Para se compreender o seu percurso, é fundamental esse período que vai do início dos anos 60 até ao 25 de Abril de 1974. É verdade que iria tornar-se, já nos anos 80, um romancista de sucesso, e deixaria ainda a sua marca no Instituto Português do Livro, que fundou em 1980 e ao qual presidiu até 1986. Mas não era já, como tinha sido nas décadas anteriores, uma figura central da vida cultural e política do país.
Os muitos depoimentos de amigos que surgiram nos jornais e na Internet após a sua morte elogiaram, sobretudo, o escritor de talento e o homem vertical, solidário, sensível, afectuoso, amante da vida. Só o de Vasco Pulido Valente, sem refutar a justeza dos restantes testemunhos, desafinou do tom geral, lembrando, numa das suas crónicas no PÚBLICO, que o Alçada Baptista que conheceu nos anos 60 - na redacção de O Tempo e o Modo - "tinha ambicionado um alto destino, de que a sorte e, no fundo, a sua própria natureza o desviaram". O que Alçada Baptista realmente queria, diz Pulido Valente, era "mudar o catolicismo e o país" e, "em última análise, criar em Portugal um partido democrata-cristão, como os que nessa época governavam a Europa".
Embora se autodefinisse mais tarde como "um boémio do espírito", e nunca tenha sido, de facto, um político no sentido mais profissional do termo, as iniquidades do Portugal salazarista levaram-no a achar, ainda nos anos 50, que tinha o dever de tentar levar à prática as suas convicções cristãs e contribuir para uma alteração real da sociedade. O caminho que levou até esse ponto um homem criado numa abastada família católica e salazarista da província - nasceu na Covilhã, em 1927, e, antes de ir para Lisboa estudar Direito, frequentou um colégio de jesuítas em Santo Tirso -, descreve-o ele próprio em Peregrinação Interior. Reflexões sobre Deus (1971), talvez a obra que melhor espelha o que foi o drama interior desses a quem Ruy Belo chamaria, num célebre poema, "os vencidos do Catolicismo". Sublinhando a ostensiva sinceridade do livro, Eduardo Lourenço, que o recenseou para a Colóquio Letras, diz que nele cumpriu o autor "a salutar missão de se confessar e exorcismar por muitos".
Pequena revolução cultural
Lourenço concorda com a visão que Pulido Valente dá do percurso de Alçada Baptista. "Ele conheceu-o bem e, no artigo que escreveu, desloca o caso do Alçada de uma focagem puramente literária para lembrar a personagem que ele foi nas nossas batalhas ideológicas", disse o ensaísta ao P2. Lembrando a designação de "catolicismo progressista" então atribuída a Alçada e aos amigos com quem fundou O Tempo e o Modo, Lourenço acrescenta: "Catolicismo, sim, sem dúvida nenhuma - vinha-lhe daquela Beira, que foi sempre o mais importante -, mas quanto ao progressismo já podemos pôr reticências, negativas e positivas." Os próprios visados, aliás, já então não simpatizavam com o rótulo, ao qual preferiam o de "católicos de esquerda".
Nascido nessa mesma Beira conservadora e católica, o autor de O Labirinto da Saudade define Alçada como alguém que não se reconhecia no catolicismo obsoleto do Portugal salazarista e que se revia no personalismo de Emmanuel Mounier e no projecto de uma Igreja com genuínas preocupações sociais.
Em 1958, Alçada Baptista, farto da advocacia, que exerceu durante meia dúzia de anos, compra a Moraes, onde publicará, designadamente na colecção Círculo do Humanismo Cristão, um significativo conjunto de obras de teólogos envolvidos na preparação do Concílio Vaticano II. O percurso da geração de católicos a que pertenceu só pode perceber-se integralmente tendo em conta essa lufada de ar fresco que o Vaticano II (1962-1965) viera trazer à Igreja. "Aquelas traduções todas que a Moraes editou, de uma nova teologia que nunca cá tinha chegado, decerto influenciaram muita gente", diz Lourenço. "E deviam ter abalado a Pátria, mas nada a abala."
A origem social de Alçada e dos seus amigos mais próximos - como Alberto e Helena Vaz da Silva, Bénard da Costa, Pedro Tamen, Nuno Bragança e outros -, nascidos na alta burguesia, e vários deles com linhagens fidalgas - tornava-os, diz Lourenço, "um pouco protegidos no regime", o que não impediu que muitas das edições da Moraes tivessem sido censuradas. Nos anos que antecederam o 25 de Abril, a editora lançou livros tão diversamente subversivos para a ideologia dominante como O Amor e o Ocidente, de Denis de Rougemont, O Erotismo, de Bataille, Os Contos de Maldoror, de Lautréamont, com tradução de Pedro Tamen e prefácio de Jorge de Sena, Sobre a Revolução, de Hannah Arendt, ou Toda a Verdade: de Maio de 1968 a 1970, do então dissidente comunista Roger Garaudy. Herbert Marcuse, Roman Jakobson ou Jean-Marie Domenach foram outros dos muitos autores que a Moraes divulgou em Portugal. E também Edgar Morin, que se tornaria um grande amigo de Alçada e que testemunharia a sua admiração pelos fundadores de O Tempo e o Modo, afirmando que estes, partindo de "um catolicismo que se tornava cada vez mais social", tinham tido "em curtos anos uma evolução comparável a meio século".
A Moraes assegurava ainda a versão portuguesa, dirigida por Helena Vaz da Silva, da revista internacional Concilium. E a sua colecção Círculo de Poesia, que abriu com Fidelidade, de Sena, logo em 1958, publicou o que de melhor havia na poesia portuguesa da época, desde Nemésio, Sophia, Ramos Rosa e Alexandre O'Neill, passando pela geração de Ruy Belo e Pedro Tamen, até Joaquim Manuel Magalhães e João Miguel Fernandes Jorge. Também na ficção, a editora publicou obras determinantes da literatura portuguesa contemporânea, como A Noite e o Riso, de Nuno Bragança, ou Maina Mendes, de Maria Velho da Costa.
Esta intensa actividade é, por assim dizer, a face externa da aventura de Alçada. E, apesar das suas virtudes pessoais e dos seus talentos de cronista e romancista, talvez seja por ela que mais se justifique que venha a ser lembrado. O seu amigo Pedro Tamen, num testemunho dado após a sua morte, afirma que "o que interessa é relembrá-lo como um escritor magnífico". Pedro Mexia não concorda. Num post colocado no seu blogue, diz que Alçada Baptista "escreveu dois livros fundamentais para qualquer pessoa que queira pensar o catolicismo português" (Peregrinação I e II), "fundou uma das revistas mais estimulantes do nosso panorama cultural" e "uma excelente editora", e foi "um bom presidente do Instituto Português do Livro". Mas, acrescenta, "também é justo que se lembre que Os Nós e os Laços (1985) marcou uma viragem na sua carreira e, mais importante, no romance português, hoje infestado de 'literatura dos afectos' e de afilhadas de Alçada".
"Essa coisa dos afectos"
Já a dimensão mais íntima do trajecto de Alçada é a que este partilha com um grupo de católicos, quase todos de famílias com fortes ligações ao regime, que, pelo início dos anos 60, decidem transformar radicalmente o seu modo de viver o cristianismo. A criação do que viria a ser O Tempo e o Modo foi inicialmente pensada como parte de um projecto de vida cristã em comunidade a que os envolvidos chamavam "o pacto".
"Não foi só uma pequena revolução cultural", diz Eduardo Lourenço. "Foi também uma revolta de comportamento, incluindo os comportamentos amorosos, uma espécie de Maio de 68 avant la lettre."
Contando que pensou escrever sobre o segundo volume de Peregrinação, saído em 1982, mas acabou por desistir, Lourenço parece aproximar-se um pouco do juízo de Mexia. "Nesse segundo livro havia uma certa visão seráfica, um universo calafetado, era já essa coisa dos afectos." O ensaísta coloca Alçada entre "os portugueses que têm o fascínio do Brasil, que gostam daquele lado tropical, do afecto, das paixões, do farniente", algo a que não deixa de atribuir um lado positivo, pelo seu contraste com "o pessimismo natural e visceral do português".
Se se lerem as dezenas de testemunhos publicados após a morte do escritor, percebe-se que é sobretudo essa a imagem que fica de Alçada, esse seu lado de "criador de amigos", para citar a expressão que Pedro Tamen usou no texto que escreveu para Tempo Afectuoso, o volume de homenagem a Alçada Baptista editado em 2007 pela Presença.
Mas essa personagem optimista e de bem com a vida é um retrato parcial. Numa entrevista dada aos 75 anos a Carlos Vaz Marques, Alçada, com a proverbial facilidade que tinha em expor a sua intimidade, explica que sofre de depressões cíclicas, durante as quais se torna pessimista e perde "a paciência de viver". Mas também acrescenta que sai delas "mais livre". Nessa mesma conversa, diz que nunca deixou de ter "uma referência ao transcendente", ainda que oscile entre dias em que é "um céptico com nostalgia da fé" e outros em que tem "fé com nostalgia do cepticismo".
As últimas décadas da sua vida não foram fáceis. Enterrou todo o dinheiro que tinha na Moraes e andou muitos anos a pagar dívidas após a falência da editora, em 1980. E a sua adesão ao marcelismo - depois de ter sido candidato pela oposição em 1969 - custou-lhe caro após o 25 de Abril. Tinha sido assessor de Veiga Simão, então ministro da Educação, entre 1971 e 1974, e publicara, em 1973, Conversas com Marcelo Caetano, que foi visto na oposição como um livro de propaganda.
Em 1978 entrou para a Secretaria de Estado da Cultura, onde criou e dirigiu o Instituto Português do Livro, lançou programas de incentivo à leitura e impulsionou as relações culturais com os países de expressão portuguesa. Foi, depois, administrador da Fundação Oriente, onde se manteve, já reformado, como consultor cultural. Ao mesmo tempo, dedicou-se à ficção - depois de Os Nós e os Laços, veio Catarina ou o Sabor da Maçã (1988), Tia Suzana, Meu Amor (1989) e O Riso de Deus (1994) -, continuou a publicar livros de memórias e prosseguiu a sua longa carreira de cronista, escrevendo, entre 1992 e 2006, para a revista Máxima.
Uma velhice activa, mas, mesmo assim, Pulido Valente duvida de que se sentisse realizado. Na sua crónica sobre Alçada Baptista, escreve: "Intimamente, suponho que não se conseguia ver como funcionário do Ministério da Cultura, ornamento de uma 'inteligência' espúria e colunista de uma revista 'feminina'. Quando o encontrei, em 1963, com certeza que não se imaginava assim."


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