segunda-feira, março 21, 2005




in: Diálogos Raianos
Diálogos Raianos-Ensaios sobre a Beira Interior, Org. de Donizete Rodrigues, Edições Colibri, 1999

António dos Santos Pereira-Universidade da Beira Interior
2. Os centros de poder no interior beirão: âmbitos civil, militar e religioso, se é possível distinguí-los em tempos antigos

Já, em outro lugar, confirmámos, a velha Idanha como a Matriz da Beira Interior4. Ali sobram as mais vetustas informações, lusitanas, romanas, vis]góticas, árabes e portuguesas, ainda que estas muito esquecidas.
Do tempo do predomínio lusitano da Beira, além dos Igaeditanis, conhecemos os Tapori, da Cova da Beira e da Gardunha6, com a capital no Teixoso. Fronteiros a estes, viviam os vetões, Lancienses Oppidani7, vizinhos da serra da Gata. Mais a norte, nas actuais terras de Riba-Côa situavam-se os Interanniensis e os Lancienses Transcudani. E na zona de Marialva, os Aravos. Todos eles viriam a colaborar na construção da mais importante marca romana do Ocidente Ibérico, a Ponte de Alcântara, a primeira travessia do Médio e Baixo Tejo antes das que o comboio inglês impôs, dois milénios depois e apenas no Médio Tejo.
Os lusitanos beirões ofereceram resistência aos exércitos mais poderosos do mundo, os romanos, durante mais de um século. Todavia, entre 70 e 60 a.C., no auge do seu poder, Roma domina também toda a Beira-Interior, Entre estas datas, dois acampamentos romanos estabelecem-se nos extremos do território beirão, um em Medelim, perto da Idanha, outro na Lomba do Canho, junto a Arganil.
Como centro político-administrativo e religioso, continua a desenvolver-se a cidade da Idanha.
A Lusitânia romana, abrangendo a zona entre Tejo e Douro, torna-se província inerme no princípio da nossa era. Nela são delimitados territoria por meio de padrões, os terinini augustales. Na zona da Beira, chegaram-nos um terminus de Salvador (Penamacor), um terminus de Peroviseu, um de UI, e um de Guardão (Tondela), Cremos que estas marcas administrativas protegiam explorações económicas, parti culannente as actividades ligadas à mineração e metalurgia em que a Beira era e continua mais fértil do que vulgarmente se diz.
Note-se, entretanto, que, mesmo depois da declaração de província inerme, pelo século II da nossa era, alguns grupos dirigentes locais continuavam a usar a língua lusitana, ainda que a escrevessem em caracteres latinos, demonstrando uma certa autonomia não conseguida em outras partes, designadamente do Litoral.'

4 Cfr. «A Beira Antiga: Contributo para a Questão da Regionalização», in António dos Santos Pereira (Coord.). Regionalização: Textos Oportunos. Universidade da Beira Interior. Departamento de Sociologia e Comunicação Social. Centro de Estudos Sociais, Covilhã, 1998.
5 Jorge de Alarcão. «Os Montes Hennínios e os Lusitanos». Livro de Homenagem a Orlando Ribeiro, vol. II. Lisboa, Centro de Estudos Geográficos, 1988, p. 45.
6 Localização proposta por F. Russel Cortez, «Os Tapori de Plínio. Subsídios para a sua localização». Zephyrus III, 1952, p. 175 e sgs.
7 De acordo a inscrição encontrada em S. Salvador. Cfr. João Vaz, «Inscrições romanas no Museu do Fundão». Conimbriga, XVI, 1997, p. 19.


Parece que a Lusitânia romana resistiu bem às primeiras invasões bárbaras, as dos Francos e dos Alamanos, nos finais do século IR e princípios do IV. Porém, os tesouros escondidos, neste período, parecem demonstrar uma certa insegurança que talvez se explique por ataques de pirataria, por levantamentos de grupos populares constituídos em bandos de salteadores e pela guerra civil, particularmente no tempo de Probo9. E neste período que as cidades da Lusitânia merecem planos sistemáticos de muralhas. A segunda onda de invasores bárbaros começa a pôr fim à dominação romana, só restabelecida na Lusitânia através dos Visigodos já romanizados.
Coincide com este tempo de instabilidade o movimento de cristianização. No decurso dos séculos VI e VII, foram criadas as quatro dioceses de incidência beirã: Coimbra, Viseu, Lamego e Idanha.
Idanha-a-Velha forma diocese em 569. Desde esta data e até 683, encontramos os bispos egitanienses a participar nos concílios peninsulares, deslocando-se a Lugo, a Braga, frequentemente a Toledo, mas também a Mérida e a Sevilha.
Desde os primórdios, esta vasta circunscrição diocesana além da sede idanhense organiza-se à volta de centros paroquiais. Estes instalam-se em localidades antigas e mais importantes que o vitus ordinário. Não se encontram paróquias instaladas em villae ou em fundi.
Os três centros paroquiais egitanienses situam-se um na própria Idanha, outro em Municipium10, outra em Francos". Há moedas visigóticas da Egitânia e de Municipium.
No entanto, no século VIII, os velhos godos retiram para Norte perante as arremetidas peninsulares dos muçulmanos. Estes dividirão o território em distritos (Kuras), no espaço do actual Portugal: Silves (Shilb), Mérida (Marida), Beja (Badia), Badajoz (Batalyaws), Santarém (Shantarin), Lisboa (ai
8 Assim nos aparece no Cabeço das Fráguas, perto da Guarda. A. Garcia Bellido, «Die Latinisierung Hispaniens», in Aufstieg und Niedergang der romischen Welt, t. I, 1. Nova lorque-Berlim, 1972, p. 485, cit. in Luís A. Garcia Moreno, «Iglesia y cristianización eu Portugal eu la Antiguedad, Congresso Internacional de História. Missionação Portuguesa e Encontro de Culturas. Actas, vol. 1- Cristandade Portuguesa até ao Século XV. Evangelização Interna, Ilhas Atlânticas eAfrica Ocidental, Braga, 1993, p. 228.

9 Cir. Manuel Heleno, «O tesouro da Borralheira (Teixoso)», in O Arqueólogo Português, Lisboa, s. 2, 1953, pp. 213-225.
10 Um município de direito romano confinava com uma cidade indígena, mais ou menos privilegiada.
11 É uma paróquia com o nome do seu grupo étnico.

-Ushbuna) e Coimbra (Kulumriyya). Aqui, ficava Idanha-a-Velha - «A Egitânia encontra-se a oriente de Coimbra e a ocidente de Córdova. É uma cidade muito antiga, forte e bem dotada, com um território bem provido de cereais, de vinhas, de caça e de peixes e um solo fértil»'2 comentava então um viajante muçulmano.
Era, pois, uma povoação relativamente importante, mais povoada do que Leiria, Tomar, Guimarães ou Porto. Nos séculos IX e X, um perímetro amuralhado de 700 metros cercava uma área de 5 hectares com habitação para uns 1000 habitantes.
Pela toponímia, poderíamos ainda pressupor dois lugares fortificados na Beira Interior, um, na Gaia, a caminho da Guarda e outro, em Proença, na Ribeira de Isna. Gaia vem do árabe q'ala, significando enorme recinto fortificado e al'hisn, corresponde a um castelo que defende um pequeno território (Dallière-Benelhadj, 1993). Não encontramos a terminologia alcáçova na Beira Interior. AI Qasr corresponde a um recinto fortificado com guarnição militar e governador.
Perto do ano mil, o movimento dos exércitos da reconquista cristã já tinha imposto castelos aos muçulmanos nos territórios beirões: Alcobria, Meda, Caria, Longroiva, Moreira de Rei, Numão, Penedono, Trancoso e Muxagata. Todavia durante quase dois séculos, a fronteira cristã ficou aqui na Cordilheira Central e só se deslocou a sul, à parte baixa da Beira nos meados do século XII pela acção dos vencedores de S. Mamede e das Ordens Militares.
Nestes dois séculos, houve paradoxalmente ausências e simultaneamente multiplicação de poderes nos espaços da Beira. Foram tempos de perturbações graves, em Viseu, em Seia, na Covilhã e em Castelo Branco, até que finalmente a nova Corte de D. Sancho I percebeu a situação e tomou medidas definitivas no concernente aos poderes locais, intermédios e delegados, senhoriais e centrais. Isto sem deixar de manter-se uma certa pluralidade no tocante aos diferentes poderes estabelecidos nesse tempo e nos posteriores.
Fortaleceram-se à volta de instituições jurídicas os concelhos e a velha capital eclesiástica foi transferida, em 1199, para o mais importante ponto de encontro das Beiras, a Guarda. Esta constitui-se de imediato também sede de chancelaria de comarca, enquanto na Idanha, Gualdim Pais fortalecia a defesa da Beira.
A referida comarca aparece patente no Regimento das Audiências (1331-1335) de D. Afonso IV, ao lado das similares Estremadura, Entre Douro e Minho, Além dos Montes e Riba de Coa, Odiava e Além-Odiana e do Reino do Algarve.


12 Na 1.a metade do século X, segundo Al Razi, in António Borges Coelho. Portugal tia EspanhaÁrabe. Lisboa, 1972, pp. 43-44.


Nos séculos seguintes, estabilizavam-se estas comarcas nos limites e nas designações: Entre-Douro e Minho, Trás-os-Montes, Beira, Estremadura, Além-Tejo e Algarve.
Nestes tempos remotos, o poder civil como o eclesiástico exerciam os respectivos múnus em itinerância, em eixo particularmente privilegiado na diocese egitaniense e na comarca da Beira, a exemplo do monarca na cúpula do país. Fora deste eixo, ficavam, obviamente, alguns territórios ermos de poder, civil e eclesiástico que as conjunturas reformadoras de Quinhentos, de Setecentos e Oitocentos tentaram corrigir sem grande sucesso, a não ser no âmbito eclesiástico na desagregação de territórios do sul da diocese, no século XVI para a constituição da nova Sé de Portalegre e no século XVIII, de Castelo Branco, com ajustamentos necessários a norte, primeiramente com a criação da diocese de Pinhel, logo extinta, e a integração de territórios da diocese de Coimbra na da Guarda.
Quanto aos poderes concelhios medievais, uma ilustre historiadora coimbrã distinguiu, no espaço em causa, quatro tipos' 3:
-o concelho fronteiriço (exemplificado por Guarda, Pinhel, Trancoso). Modernamente, juntaríamos a estes, Almeida. Caracterizados pelo necessário esforço em estruturas defensivas e perdas sucessivas de aparelho produtivo;
- o concelho comercial (a Covilhã), o mais habilitado ao investimento em aparelho produtivo e favorável à ocupação humana;
- o concelho rural/ganadeiro (Castelo Branco) de largos espaços nem sempre favoráveis à ocupação humana;
- o de tutela senhorial (Lamego e Viseu), predominantemente votados à indústria rural.

No concernente a poderes senhoriais, de jurisdição intermédia, não parece fácil seguir o seu percurso até à sua extinção, durante a revolução liberal e às sobrevivências mesmo depois desta, pela sua multiplicidade.
0 senhoreamento português do espaço beirão interior foi feito a partir do primeiro quartel de século XII pelos cavaleiros de Coimbra e parece mais intensamente pelos infanções de Entre Douro e Minho e pelas ordens militares. Cedo, porém, o monarca fez tutelar estas figuras, responsabilizadas pelas alcaidarias locais, por personalidades da mais alta nobreza, ligadas à Corte, particularmente infantes reais.
Nos primórdios do séc. XIII, a Covilhã era senhoreada por um filho bastardo de D. Sancho I, Gil Sanches14. Durante Quatrocentos e Quinhentos,a tutela covilhanense caberá de novo a infantes reais, sucessivamente, D. Henrique, D. Fernando, D. Manuel e D. Luís, encontrando-se a alcaidaria-mor da vila entregue à família dos Castros.


13 Ur. Maria Helena da Cruz Coelho (1990). «Relações de Domínio no Portugal Concelhio de Meados de Quatrocentos», in Revista Portuguesa de História, XXV, pp. 235-289.
14 Entrega da Covilhã e seu termo pelo pretor (Ermígio Pais), alcaides e concelho, por ordem de D. Sancho ao seu filho bastardo D. Gil Sanches e a Paio Pais em Janeiro de 1210. ANTT., Gavetas, 15, m. II, doe. 50 pub. in Alfredo Pimenta, «Alguns Documentos para a História da Covilhã», in, Subsídios para a História Regional da Beira Baixa, vol. II, Castelo Branco, Junta da Província da Beira Baixa, 1950, pp. 25.


Nos finais de Quatrocentos, o Conde de Marialva, D. Francisco Coutinho, dominava o mais rendível senhorio da Beira, recebendo elevadas verbas nos almoxarifados da Guarda e de Lamego, sendo representado pelos seus alcaides em Casteição, Castelo Bom, Castelo Rodrigo, Lamego, Marialva, Moreira, Trancoso etc. D. Manuel fará de seu filho, D. Fernando, 1.° Duque da Guarda e torná-lo-á herdeiro dos senhorios dos Coutinhos.
Viseu constituiu Ducado, pertenceu à Casa do Infante D. Henrique, aos seus herdeiros e na centúria próspera de Quinhentos, sucessivamente, a el-rei D. Manuel, à sua segunda mulher D. Maria de Castela, à sua filha Isabel, futura esposa de Carlos V e à princesa D. Maria. 's
O Conde de Portalegre, D. Diogo da Silva de Meneses, mantinha os seus representantes em Celorico, Gouveia e S. Romão. 16
Na mesma época, Os Castro, João, Rodrigo e Diogo, dominavam, através dos seus representantes, respectivamente, o condado de Monsanto e o senhorio fronteiriço de Castelo Mendo, as alcaidarias-mores da Covilhã e de Valhelhas, de Alfaiates e do Sabugal.
Pinhel pertenceu ao Marechal do reino D. Fernando Coutinho que, no cumprimento dos tradicionais deveres militares dos nobres, comandou, em 1509, uma armada para a índia.
Nos primórdios de Quinhentos, Almeida era senhoreada pelo Marquês de Vila Real, Belmonte e Manteigas tinham como alcaide-mor João Fernandes Cabral e Penamacor, Rui Mendes de Vasconcelos.
El-Rei fazia-se representar por Francisco de Almeida em Linhares e como Governador-mor da Ordem de Cristo pelo comendador Aires Gomes de Valadares em Castelo Branco, onde também vivia o comendador de Lousa, Diogo Lopes.
Em Casal, o comendador-mor da Ordem de Cristo era representado por um alcaide tal como em outras comendas beirãs. As terras da Ordem de Cristo multiplicavam-se por toda a Beira, muito particularmente na Beira Tejo, Beira Zêzere e Beira Fronteira. Á Ordem de Avis e ao Mosteiro de São Jorge de Coimbra, pertencia São Vicente da Beira.



15 Id., Gav. 2, m. 2, n. 1588: «Doação à Infante D. Isabel da cidade de Viseu, da vila de Torres Vedras, com as suas terras e limites, e com a sua jurisdição alta e baixa, civil e crime, mero e mixto império, ressalvando para el-rei somente correição e alçada e com todas as rendas, direitos titulares do senhorio de Viseu». Lisboa, 1517 Maio 20, pub. in A. Lucena e Vale, «Príncipes titulares do Senhorio de Viseu», Beira Alta, Viseu, 23 (1, 2), 1964, pp. 112-114.
16 Cfr. Luís F. Oliveira e Miguel J. Rodrigues, «Um Processo de Reestruturação do Domínio Social da Nobreza. A Titulação na 2.' Dinastia», in Revista de História Económica e Social, n.° 22 (1988), Janeiro-Abril, p. 109.


0 Mosteiro de Tarouca fazia estender propriedades, por limites extensos, que ultrapassavam a comarca até Trás-os-Montes, Entre Douro e Minho e mesmo até à Estremadura e ao bispado de Tui.
Os domínios do Convento de Santa Cruz de Coimbra chegavam a Viseu e a Gouveia.
De considerar ainda que beneficiando de foro próprio, até finais de Quatrocentos, as comunidades judaicas tiveram dois tribunais de apelo no espaço beirão, ficando um em Viseu, para os territórios de Além-Serra e outro na Covilhã, para os de Aquém-Serra.

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