domingo, janeiro 04, 2004

Vida e morte da tradição
Entrevista de João Lisboa a José Alberto Sardinha
Jornal Expresso, 5 de Maio de 2001


Seguindo a esteira de Giacometti, José Alberto Sardinha estuda a tradição musical popular



João Carlos Santos

J. A. Sardinha: à procura da música sem certidão de nascimento

Tradições Musicais da Estremadura, do investigador José Alberto Sardinha, é uma daquelas obras monumentais de etnomusicologia de que seria bom existirem milhares de exemplares avidamente adquiridos por escolas, bibliotecas e museus. Num trabalho de recolha e gravação (musical, fotográfica, videográfica) realizado ao longo de mais de 20 anos por todo o espaço nacional e, agora, centrado sobre a região da Estremadura (incluindo três CD, um apêndice com transcrições e notas musicográficas, um romanceiro, um devocionário, um inquérito linguístico/glossário e um guia de audição dos discos, para além de contar, como prefácio, com o último texto redigido por Fernando Lopes-Graça antes da sua morte) reúne uma minuciosa documentação, estudo e análise da tradição popular e dos seus protagonistas ainda vivos ou já desaparecidos. O que interessa, porém, a Sardinha não é o conceito romântico da demanda da «alma perdida da Pátria», mas sim o entendimento fundamentado de como as tradições se preservam e evoluem.
Apesar de se debruçar sobre as tradições musicais da Estremadura, esta nem sequer é a região do país sobre a qual possui o arquivo mais extenso...

Tenho recolhas de todo o país, excepto a Madeira, organizadas por províncias, sendo que a província de que tenho mais material recolhido é Trás-os-Montes, a seguir a Beira Baixa, e a Estremadura só em terceiro lugar.

Isso poderá ter a ver com o facto de, inicialmente, ter a ideia de que se trataria de uma zona pouco rica do ponto de vista da música tradicional. A que se devia esse «preconceito»?

Principalmente pela ausência de notícias etnomusicais, que se devia à falta de investigação no terreno, uma vez que os estudiosos anteriores se haviam dedicado muito pouco à Estremadura. O Giacometti tinha poucas coisas editadas, o Armando Leça também, o Artur Santos e o Lopes-Graça não tinham nada, e o próprio Ernesto Veiga de Oliveira também não. Aquele aspecto de as pessoas gostarem muito do «instrumento arcaico» conduziu-os mais, por exemplo, para Trás-os-Montes, que é mais longínquo.

Esse preconceito não terá surgido por causa duma certa concepção acerca da música tradicional, de que tanto mais «pura» e «autêntica» seria quanto tivesse persistido longe da «contaminação» urbana?


Claro que sim. E, contudo, foi aqui que encontrei alguns dos exemplares que se podem considerar mais arcaicos do ponto de vista etnomusical, recolhidos, por exemplo, a poucos quilómetros da Ericeira! Esses conceitos estavam errados, como estava também o conceito de música tradicional como algo de «puro» e «longínquo», perdido no tempo e no espaço.

Na introdução refere que «é fundamental avaliar quais as manifestações mais antigas (...) e distingui-las das mais recentes, que não foram ainda sujeitas à tradicionalização». Qual o critério para averiguar a «tradicionalização» duma determinada peça musical popular?

A tradicionalização resume-se nisto: há um criador individual que é conhecido na altura (a concepção romântica da criação colectiva está posta de parte), divulga as suas criações musicais e elas expandem-se. Elas são popularizadas no sentido em que se difundem entre o povo. Se morrerem na primeira geração, não se tradicionalizaram. Mas se forem mantidas através de gerações, vão-se transmitindo, tradicionalizando e caindo no anonimato. Essa é a música de tradição oral, não escrita, que não possui certidão de nascimento. Por acaso, esse primeiro capítulo do livro (que estava escrito há mais de dez anos, com conceitos completamente diferentes) foi reformulado recentemente. No início, fui-me limitando a gravar guiado por uma certa intuição do que então considerava «autêntico». A pouco e pouco, fui alargando esse critério. Acabei por chegar à conclusão de que não há «autêntico» nem «não autêntico», mas apenas a tradição, que é algo de muito mais lato.

A obrigatoriedade de anonimato do criador original não pode impedi-lo de registar espécimes inseridos na tradição, embora criados agora?

Gravo à mesma. Se esse facto for conhecido por mim, devo assinalá-lo. Há aqui uma canção de cegada que, de facto, é um fado, dos mais conhecidos até. Como é habitual, o povo adaptou uma letra a uma música que andava em circulação, eu gravei-a e assinalei-o. Há um fenómeno até que merecia um grande estudo que é o caso do Quim Barreiros: um cantor tradicional que herdou toda a tradição da música minhota e que cria de acordo com os parâmetros que lhe foram fornecidos pela tradição. Só que ainda ninguém reparou nisso. Os intelectuais acham aquilo uma «pimbalhada» (aliás, o divórcio entre os intelectuais e o povo permanece - se calhar, se vivessem há cem anos achariam a música popular da época «pimba», embora, agora, como é «antiga», já gostem...), mas ele tem criações onde, por exemplo, se identifica perfeitamente a estrutura musical do malhão do Norte que ele recriou. Com letras, em parte, fornecidas pela tradição. Aquela do «bacalhau», se se for ao Leite de Vasconcelos, está lá, é uma quadra popular do fim do século XIX! Era preciso estudar musicalmente tudo isso. Eu tenho discos do Quim Barreiros, comecei a coleccioná-los. E, um dia, se tiver tempo, hei-de escrever sobre isso.

Enquanto, habitualmente, se encara a recolha da tradição como um trabalho quase arqueológico sobre algo praticamente extinto, dever-se-ia ou não encarar a actual música comercial/pimba como a expressão da tradição popular contemporânea...

Que se irá ou não tradicionalizar...

E, já agora, no final do ano passado, o Museu de Artes e Tradições Populares de Estocolmo inaugurou duas exposições. Uma sobre a cultura, tradições e costumes dos lapões. E outra, ao lado, sobre ...os Abba. O que é que isto lhe sugere?



«O urbano vai em busca do tempo perdido»

Desde o Renascimento, quando os intelectuais disseram «odi profanum vulgus» (odeio o vulgo profano), que era a máxima da época, tem havido um crescente divórcio entre os intelectuais e o povo. Na cultura medieval e trovadoresca isso não acontecia. E esse divórcio permanece hoje na apreciação que os intelectuais fazem da música «pimba». Sobre o fado, já tenho lido afirmações segundo as quais foi um fenómeno popular de que a nobreza se apropriou. A verdade é esta: graças a Deus que a nobreza gostou do fado e a burguesia, por imitação, o tomou em moda! Senão a burguesia, com o seu ódio ao povo e a tudo o que dele vem, tê-lo-ia aniquilado ou anulado historicamente, como sucedeu com muitas outras tradições populares. Isto é demonstrativo das oscilações do gosto da intelectualidade na apreciação de determinados fenómenos e de como, muitas vezes, só os entendem quando uma classe imitada os legitima. Eu não me dedico a ele, mas esse estudo da cultura popular contemporânea é inteiramente pertinente e necessário.

Por outro lado, existe a ideia de que enquanto na «velha» música tradicional se encontram espécimes musicalmente ricos, a cultura popular contemporânea é pobre, indigente...

Musicalmente falando, há coisa mais pobre do que o fado? E, no entanto, é o fenómeno musical português mais estudado e talvez o mais digno de ser estudado. Senão vejamos: na música tradicional, de onde vêm os exemplares musicalmente mais ricos? A tradição fê-los chegar até nós, mas são de origem eclesiástica, não popular, embora posteriormente popularizados e tradicionalizados.

Sente que se acentuou a tendência para a extinção da tradição por ser algo a que o povo não atribui importância e que só interessa a intelectuais urbanos em busca da alma perdida da Pátria?

Geralmente, o urbano vai em busca do antigo, do exótico. Desde a Renascença, ao mesmo tempo que os intelectuais começaram a odiar o vulgo, também começaram a mitificar o campo. O ideal da «aurea mediocritas» que o Sá de Miranda cantava, não é se não isso: um retiro bucólico entre os pastores simples e ingénuos, onde residiria a alma pura do homem. A apreciação que os urbanos fazem desta música responde sempre à busca dum tempo perdido. Entre o povo, algumas destas manifestações musicais estão completamente extintas, já só residem na memória de alguns informadores. Não há dúvida que, nos últimos dez anos, os trabalhos agrícolas sofreram uma profunda transformação. As tradições que ainda se conservam mais são as religiosas. Os gaiteiros que acompanham os círios ainda se mantêm em actividade. Na Estremadura cistagana, ali para Palmela, os próprios gaiteiros formaram grupos que fazem bailes a tocar música que ouvem na rádio. Tal como, aliás, em Trás-os-Montes há novas gerações de gaiteiros aos quais forneci gravações de repertório tradicional.

Existem características propriamente estremenhas na música tradicional da região?

As coisas que eu gravei podem-se considerar estremenhas, na medida em que o povo quis que elas permanecessem na sua tradição. Terá havido coisas que desapareceram noutras províncias e se mantiveram nesta. Não se deve perguntar porque é que isto nasceu aqui e não noutro sítio, mas porque é que sobreviveu aqui e não noutro lugar. A gaita de foles era um fenómeno nacional. O adufe, a mesma coisa. Porque é que hoje só subsiste na Beira Baixa? Isso é que é interessante estudar e não se deixar cair na tentação de inventar coisas supostamente identificadoras de uma terra ou de uma região. O que tem a ver com as consequências da massificação e da globalização que conduz à busca de identidades locais fortes. Foi o que aconteceu com os caretos em Trás-os-Montes que estavam quase extintos e hoje são um fenómeno local que ressurgiu.

Aí mesmo é curiosa a sobreposição de dois movimentos contrários e simultâneos: a recuperação da tradição «antiga», agora academizada e eruditizada e, por baixo disso, o desenvolvimento da tal cultura popular comercial/pimba que irremediavelmente a substituiu...

Mas isso são as formas de normalização da música tradicional. Pode ser inevitável, mas, de um ponto de vista musical, tende a empobrecer. A verdadeira escola da tradição tem de ser a tradição. Só a convivência, o toque e o canto dos mais velhos podem ensinar. Nesse tipo de aprendizagem, tende-se a adoptar os exemplares mais simples e a excluir os mais ricos, há um empobrecimento. O que aconteceu muito com as concertinas. Contudo, há fenómenos que ainda permanecem muito vivos como é o caso das romarias do Minho ou os círios na Estremadura que se mantêm integralmente. Mas, na maioria dos casos, à medida que as populações foram abandonando os campos, deixou de haver espaço, tempo e função para cantar. Embora ainda haja casos onde, nas festas da aldeia, ao sábado, actua o conjunto musical para o baile mas é reservado um dia - geralmente a segunda-feira, que é dia de guarda - para um tocador popular e toda a gente dançar à moda antiga. Ou o exemplo do adufe, que está, neste momento, a agarrar muita gente na Beira Baixa. Já não, evidentemente, tocado à soleira da porta nas funções antigas, mas noutras circunstâncias.


fonte: Jornal Expresso


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